O novel instituto encartado na lei 14.382/22 da adjudicação compulsória extrajudicial é sim uma inovação em prol da sociedade

 

INTRODUÇÃO

 

No final do ano de 2020, o Brasil possuía um acervo de 62,4 milhões de ações judiciais pendentes de julgamento final. Naquele mesmo ano, ingressaram no Poder Judiciário Brasileiro 17,6 milhões de novas ações.

 

Os números são elevadíssimos, o Poder Judiciário brasileiro, mesmo com todo o ganho de eficiência através de tecnologia e modernização legislativa, não suporta tanta demanda.

 

Uma das soluções para desafogar o Poder Judiciário, é, sem dúvidas, a desjudicialização. A título de exemplo, a desjudicialização dos divórcios e inventários, desde a publicação da lei 11.441/07, retirou mais de dois milhões de processos dos corredores judiciais, o que representa o não ingresso dessas ações, resultando em uma economia aos cofres públicos que supera os 5 bilhões de reais

 

Por meio da lei 14.382, de 27 de junho de 2022, o legislador brasileiro trouxe mais uma inovação no avanço da desjudicialização, a adjudicação compulsória extrajudicial, incluída na Lei de Registros Públicos, como procedimento a ser tramitado junto ao Registro de Imóveis competente.

 

Entretanto, a referida Lei se limitou criar o instituto, inexistindo um regramento procedimental, sem, também, limitar as hipóteses de utilização. Tal qual a lei 11.441/07, que inaugurou os divórcios e inventários extrajudiciais, parece claro que o instituto da adjudicação compulsória extrajudicial deverá ser regulamentado para que o procedimento e limites sejam aderentes a legislação vigente, o que alcançaria norma infralegal a ser estabelecida pelos órgãos corregedores estaduais e nacional.

 

Nesse cenário, o presente artigo busca debater o tema e trazer a baila pontos que ainda dependem de regulação.

 

De proêmio, importa constatar que a adjudicação compulsória é, em verdade, instituto de direito processual civil, ferramenta para consecução de direito material trazido pelo Código Civil vigente, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002, in verbis:

 

Art. 1.418. O promitente comprador, titular de direito real, pode exigir do promitente vendedor, ou de terceiros, a quem os direitos deste forem cedidos, a outorga da escritura definitiva de compra e venda, conforme disposto no instrumento preliminar; e, se houver recusa, requerer ao juiz a adjudicação do imóvel.

 

Leciona Ricardo Arcoverde Credie que a adjudicação compulsória é:

 

A ação pessoal que pertine ao compromissário comprador, ou ao cessionário de seus direitos à aquisição, ajuizada com relação ao titular do domínio do imóvel – que tenha prometido vende-lo através de contrato de compromisso de venda e compra e se omitiu quanto à escritura definitiva – tendente ao suprimento judicial desta outorga, mediante sentença constitutiva com a mesma eficácia do ato não praticado.

 

Destaque-se que o conceito do instituto tem como premissa essencial a recusa do vendedor em transmitir o domínio ao comprador, ou seja, a resistência injustificada do vendedor é uma condição da ação. Logo, havendo o comprador cumprido suas obrigações contratuais, lhe assiste o direito da transmissão do domínio, o que é tutelado, na hipótese da recusa, pela adjudicação compulsória, que interpretação latu sensu é uma substituição da vontade da parte por meio da jurisdição ínsita ao Poder Judiciário.

 

CAPÍTULO I – DA ADJUDICAÇÃO COMPULSÓRIA EXTRAJUDICIAL E A IMPORTÂNCIA DE SUA REGULAMENTAÇÃO INFRALEGAL

 

Trazido ao universo jurídico pela Medida Provisória 1.085/21, convertida em lei já em 2022, o procedimento extrajudicial de adjudicação compulsória merece ser festejado, pois incorpora uma nova ferramenta de exercício de direito dos cidadãos aos serviços dos cartórios extrajudiciais brasileiros, potencializando a prestação do serviço público por meio da capilaridade dos delegatários de serviços extrajudiciais, sem que com isso se perca a segurança jurídica desenhada pelo tecido normativo brasileiro.

 

O texto legal previsto na nova lei insere o art. 216-B, na Lei de Registros Públicos, lei 6.015, de 31 de dezembro de 1973 nos seguintes termos:

 

Art. 216-B. Sem prejuízo da via jurisdicional, a adjudicação compulsória de imóvel objeto de promessa de venda ou de cessão poderá ser efetivada extrajudicialmente no serviço de registro de imóveis da situação do imóvel, nos termos deste artigo.   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

 

  • 1º São legitimados a requerer a adjudicação o promitente comprador ou qualquer dos seus cessionários ou promitentes cessionários, ou seus sucessores, bem como o promitente vendedor, representados por advogado, e o pedido deverá ser instruído com os seguintes documentos:   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

 

I            – instrumento de promessa de compra e venda ou de cessão ou de sucessão, quando for o caso;   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

 

II          – prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias, contado da entrega de notificação extrajudicial pelo oficial do registro de imóveis da situação do imóvel, que poderá delegar a diligência ao oficial do registro de títulos e documentos;   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

 

III        – (VETADO);    (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

 

IV        – certidões dos distribuidores forenses da comarca da situação do imóvel e do domicílio do requerente que demonstrem a inexistência de litígio envolvendo o contrato de promessa de compra e venda do imóvel objeto da adjudicação;  (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

 

V         – comprovante de pagamento do respectivo Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis (ITBI);   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

 

VI        – procuração com poderes específicos.   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

 

  • 2º (VETADO).   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022)

 

  • 3º À vista dos documentos a que se refere o § 1º deste artigo, o oficial do registro de imóveis da circunscrição onde se situa o imóvel procederá ao registro do domínio em nome do promitente comprador, servindo de título a respectiva promessa de compra e venda ou de cessão ou o instrumento que comprove a sucessão.   (Incluído pela Lei nº 14.382, de 2022).

 

A lei, de caráter procedimental, muito embora tenha trazido os requisitos mínimos para a consecução do direito de adquirir a propriedade compulsoriamente e tenha inovado na esfera extrajudicial, criou uma abertura demasiada subjetiva ao Registrador de Imóveis, pois olvidouse que a adjudicação compulsória tem como pressuposto a recusa, no litígio, sua razão de existir.

 

Nesse espeque, diversamente dos demais procedimentos até hoje levados à desjudicialização, o legislador não apresentou ou estabeleceu as métricas em relação ao consenso ou dissenso das partes, sendo, no caso da adjudicação compulsória, mais precisamente o posicionamento do proprietário vendedor.

 

Em que pese, o acerto de criação do novo instituto, a definição da consequência procedimental em face do posicionamento do proprietário vendedor, instado a se manifestar em um procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, torna-se imprescindível, pois tem impacto no Direito Material propriamente dito.

 

1.1. Da concordância do proprietário vendedor 

 

Nota-se que, pela própria natureza da adjudicação compulsória, de forma oposta dos divórcios e inventários, não poderá haver consenso na adjudicação compulsória extrajudicial, sob pena de, em verdade, estar-se registrando uma compra e venda por instrumento transverso ou, até mesmo, simulado.

 

Em outras palavras, entende-se que, na ocasião de resposta positiva do vendedor à notificação enviada, aquiescendo o vendedor com a transmissão da propriedade, não pode o registrador dar seguimento ao feito, sem apresentação pelas partes, da devida escritura pública, sob pena de ofensa ao disposto na norma de direito material, focalizada no já reproduzido art. 1.418 do CC/02.

 

Em suma, pela inteligência da norma civil, fica evidenciado que na hipótese do consenso, ausente a necessidade de compulsoriedade da transmissão, devem as partes pactuar o instrumento definitivo, nos limites do disposto no art. 108, do CC/02.3 No caso de uma ação judicial, alegar-se-ia, inclusive a perda do objeto, posto que as parte conformarão a intenção por meio de escritura pública, restando ao Poder Judiciário a determinação, tão somente, de que seja lavrada a escritura pública.

 

Isto porque, vale lembrar, o instituto da adjudicação compulsória tem o propósito de demandar do Estado-Juiz uma declaração de vontade substituta, suprindo a obrigação não cumprida pelo vendedor. Se no procedimento administrativo de adjudicação compulsória essa obrigação de fazer não é resistida, não há que se falar em substituição de algo que existe e está disponível.

 

Até mesmo no procedimento judicial, a decisão substitutiva da vontade só virá se no prazo determinado em citação, o devedor da obrigação não a cumprir, como bem exemplificado pela doutrina, veja-se:

 

De acordo com o art. 501 do CPC/15: “Na ação que tenha por objeto a emissão de declaração de vontade, a sentença que julgar procedente o pedido, uma vez transitada em julgado, produzirá todos os efeitos da declaração não emitida.”. Portanto, se A promete a venda de um imóvel a B e se nega a cumprir o pré-contrato, B pleiteará sentença que supra a declaração contratual do faltoso, caso não cumpra a sua obrigação no prazo estipulado na citação, gerando a decisão efeitos idênticos ao do título prometido, com evidente possibilidade de antecipação de tutela.4

 

Portanto, a primeira circunstância fática, no procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, que merece arrimo de norma infralegal é a delimitação de que se o proprietário vendedor, instado a se manifestação sobre a compulsoriedade de transmissão da propriedade, concordar com a outorga do direito, o expediente deverá ser findado e a demanda transferida ao tabelião de notas para que lavre a escritura pública definitiva de compra e venda, conformando o negócio jurídico compromissado.

 

No contexto do artigo 216-B, da lei 6.015/73, trazido pela novel legislação, há uma previsão que deve ser aclarada, reza o inciso II que um dos requisitos para o procedimento é a prova do inadimplemento, caracterizado pela não celebração do título de transmissão da propriedade plena no prazo de 15 (quinze) dias. Veja-se que muito embora haja aqui uma previsão sobre inadimplência, não se trata de anuência no contrato e sim de inadimplência em cumprir o acordado.

 

Assim, a própria lei já traz esse requisito, em leitura ao contrário, significa dizer que, se em 15 dias o proprietário aquiescer, perece o procedimento de adjudicação e deve ser formalizada a escritura pública.

 

Ademais, como poderá o registrador ter a certeza de que, no fatídico prazo de 15 dias previsto na lei, de fato, não houve a celebração do instrumento devido? E como poderá saber se, após o referido lapso temporal, o responsável pela não formalização do ato translatício tenha sido realmente o promitente vendedor/cedente?

 

Repisa-se, que a disciplina acima apontada se faz necessária, em especial, para que se evitem fraudes, com a simulação do expediente da adjudicação compulsória extrajudicial para realizar a transmissão da propriedade de forma transversal, sob os riscos de evasão tributária.

 

1.2. Da discordância motivada do proprietário vendedor

 

Por outro lado, e parece claro que, havendo o expresso dissenso do proprietário vendedor, de forma fundamentada, o procedimento extrajudicial também deverá ser encerrado. Isto porque, a pretensão resistida se demonstrou não apenas para fins formais, mas sim em sentido jurídico para uma das partes do negócio jurídico.

 

Não há dúvidas de que, sob pena de violação ao princípio constitucional do contraditório, o vendedor poderá apresentar suas razões fundamentadas, hipótese em que, pela ausência de jurisdição nas serventias extrajudiciais, o procedimento deverá ser encaminhado para as vias judiciais, servindo o procedimento extrajudicial de instrução hábil a subsidiar a decisão judicial.

 

Retomando o inciso II do artigo 216-B da lei 6.015/73, acima citado, aqui há um prazo de 15 dias para o vendedor se opor ao procedimento, o que poderá ser feito motivadamente, impedindo, da mesma forma, que o procedimento continue.

 

Logo, seguindo a linha de raciocínio acima delineada – segundo a qual o procedimento da adjudicação compulsória deve estar regulamentado na norma infralegal – faz-se necessário definir que, na hipótese em que o proprietário vendedor se oponha ao procedimento, restará inviabilizado o registro. Isso porque estará ausente o requisito mais caro que permeia o movimento de desjudicialização nas serventias extrajudiciais, qual seja, o consenso ou não existência de pretensão resistida. Nesse contexto, portanto, o oficial de registro de imóveis deve findar o expediente e encaminhar as partes para dirimirem o litígio perante o Poder Judiciário, único que terá competência para dizer o Direito.

 

1.3. Da ausência de resposta do proprietário vendedor

 

Superada as situações mais elementares em face da oitiva do proprietário vendedor no procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, quais sejam, a anuência ou recusa motivada, resta investigar o instituto em uma zona cinzenta, ou seja a aplicação delimitada à não resposta da parte citada, que busca-se explicar a seguir, iniciando-se pela leitura do artigo 111 do Código Civil:

 

Art. 111. O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.

 

A interpretação, deixa-se para o professor Tartuce melhor delinear: “Desse modo, por regra, quem cala não consente, eis que, para que seja válida a vontade tácita, devem estar preenchido os requisitos apontados”. (TARTUCE, Flavio. Manual de Direito Civil: volume único. 6. ed. ver. atual. e ampl. Pág. 233 – Rio de Janeiro: Forense: São Paulo: Método, 2016)

 

E, ao arrimo, vale a leitura dos comentários do Código Civil feitos sob a coordenação do ex-ministro Cesar Peluso, in verbis:

 

“A manifestação da vontade pode ser tácita ou expressa. O CC/1916 estabelecia que “a manifestação de vontade, nos contratos, pode ser tácita, quando a lei não exigir que seja expressa” (art. 1.079). A mesma regra pode ainda ser aproveitada.

 

O silêncio, por sua vez, é modalidade de manifestação da vontade, que ora é tratada como subespécie da manifestação tácita, ora como da expressa, e, na literatura nacional, já foi seu alcance exaustivamente estudado por Serpa Lopes (O Silêncio como manifestação da vontade nas obrigações, 2. ed. Rio de Janeiro, Livraria Suiça, Walter Rolter Editora, 1961).

 

Não se deve entender o silêncio segundo a noção vulgar, quando a questão for jurídica, pois nesta importa não só o não falar, como o não fazer. Tampouco é possível dar guarida ao dito popular “quem cala consente”.

 

Para que o silêncio opere juridicamente, é preciso, consoante as conclusões de Serpa Lopes: a) a manifestação da vontade mediante um comportamento negativo; b) que as circunstâncias sejam concludentes; c) que a parte tenha o dever ou obrigação, bem como a possibilidade de falar; d) a convicção da outra parte de haver no comportamento negativo uma direção inequívoca e incompatível com a expressão de vontade oposta. Há, portanto, exigência de boa-fé bilateral.

 

Entre esses requisitos sobrelevam as circunstâncias, pois, conforme Manuel A. Domingues de Andrade, “o silêncio não pode interessar quando isolado de qualquer circunstância anterior ou concomitante – máxime um comportamento da contraparte ou de outrem” (Teoria geral da relação jurídica, 4. reimpr. Coimbra, Almedina, 1974, v.II, p. 138).

 

O silêncio opera como produtor de efeitos, por exemplo, nos casos de contratos renovados ou prorrogados, destacando-se o de locação de imóveis, em que é usual a inclusão de cláusula pela qual entende-se prorrogado o prazo caso não haja manifestação em sentido contrário de uma das partes, sem embargo de, na hipótese, ocorrerem prorrogações legais (arts. 46, §1º, 50 e 56, parágrafo único, da lei 8.245/91), ante a falta de oposição do locador”. (Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência: lei 10.406, de 10.01.2002 / coordenador Cezar Peluso – 11. ed. ver. e atual.Pag. 89 – Barueri, SP: Manole, 2017)

 

Logo, cumpre, desde já, estabelecer um pressuposto importante, que a Lei Civil não determina que o silêncio é automaticamente a anuência, ou a não oposição, quanto menos será para o caso das adjudicações compulsórias, já que o efeito do silêncio é perda da propriedade.

 

Vale lembrar que o silêncio como consenso na perda da propriedade já possui guarida no procedimento da usucapião extrajudicial, porém com uma grande diferença: o tempo para a prescrição aquisitiva. Numa hipótese de contrato de compra e venda com prova do pagamento (justo título), o adquirente precisa esperar dez anos para conseguir extrajudicialmente pleitear a propriedade. Se na adjudicação o silêncio ganhar a mesma força, estaria o legislador criando uma nova hipótese de usucapião, sem necessidade de nenhum lapso temporal.

 

Desta forma é impossível assegurar que, caso o proprietário vendedor não se manifeste sobre a adjudicação compulsória, estar-se-á diante de uma possibilidade de prosseguimento do procedimento extrajudicial, sob pena de se transformar o instituto em testilha em um salvo conduto para legitimação de compradores na posição de legítimos proprietários, acabando com o instituto da usucapião ordinária quando o justo título for uma promessa de compra e venda quitada. Não nos parece ser essa a intenção do legislador.

 

Há que se conhecer as razões da recusa do instrumento definitivo, sob pena de não poder ser dispensada a jurisdição, o silêncio não instrui o procedimento devidamente, sendo germe de possível litígio, nos seios do serviço extrajudicial, em oposição total a função social dos registros públicos de pacificação social e profilaxia jurídica.

 

Veja-se que, apesar de o Brasil não adotar o sistema de registro Torrens como regra, ainda assim, a matrícula traz a presunção relativa da propriedade e o desfazimento demanda muito mais que uma promessa quitada de compra e venda assinada (se é que foi o proprietário que assinou) e um silêncio.

 

Nesse tom, sempre deve-se repisar que os expedientes extrajudiciais, em regra, não podem contemplar circunstâncias de litígio ou de ausência de consenso, sendo as exceções limitadas a situações bastante específicas.

 

Não há como deixar de mencionar, ainda, que um silêncio intencional, de quem foi devidamente notificado, traz o consentimento mais do que tácito, tratando-se de um silêncio eloquente, que transforma a hipótese em concordância que demanda a solução trazida no capítulo 1.1, do presente artigo.

 

Assim, partindo das premissas acima, buscando efetivar o instrumento extrajudicial criado, sem descuidar da essencial segurança jurídica inerente dos serviços extrajudiciais, apresenta-se para a controvérsia alguns caminhos a seguir exemplificados.

 

1.3.1 – Da comprovação de impossibilidade de manifestação do proprietário vendedor 

 

Conforme defendido, a atuação extrajudicial deve ter seus limites estabelecidos, com base na legalidade e na interpretação sistêmica de todo o direito notarial e registral brasileiro.

 

Entende-se que o procedimento deve ser pautado na atuação profilática do serviço extrajudicial, transmitindo a propriedade em hipóteses claras e documentadas de impossibilidade de lavratura de escritura pública.

 

A primeira hipótese é a morte ou declaração de ausência do promitente vendedor. Não restam dúvidas que, documentada no procedimento a morte ou ausência civil do vendedor resta impossibilitada a lavratura de instrumento definitivo.

 

Tendo sido comprovado o pagamento do imóvel em sua integralidade, antes da morte ou declaração de ausência, o direito a outorga da escritura já se implementa, hipótese em que o bem alienado sequer integrará o espólio do falecido.

 

Da mesma forma que na pessoa natural, a extinção da pessoa jurídica também deve ser uma hipótese de aplicação da adjudicação compulsória extrajudicial.

 

Não é raro nos depararmos com imóveis oriundos de grandes loteamentos, que, mesmo após quitados, nunca foram transferidos definitivamente. Muitas das vezes, as empresas que lotearam já foram extintas, por falência, por encerramento do objeto social ou até por distrato social.

 

Tal comprovação é facilmente documentada perante as Juntas Comerciais e o próprio Registro de Imóveis.

 

Outra hipótese a ter a utilização do instrumento extrajudicial é a incapacidade civil superveniente do vendedor. Notificado o vendedor incapaz, poderá o seu curador responder informando da incapacidade civil, nos termos da lei.

 

Havendo pagamento total do imóvel anterior a declaração de incapacidade, não há dúvidas que surge a possibilidade de adjudicação extrajudicial do imóvel, não se vislumbrando qualquer prejuízo ao interditado.

 

Acredita-se, ainda, em mais uma hipótese de impossibilidade de manifestação do promitente vendedor, que, apesar de assemelhar-se ao silêncio tratado anteriormente, ao nosso sentir, autoriza o prosseguimento extrajudicial da adjudicação compulsória.

 

Tratar-se-ia da hipótese da certificação pelo Oficial de Registro de Imóveis, ou do Oficial de Registro de Títulos e Documentos, da localização incerta e não sabida do promitente vendedor.

 

Apesar de assemelhar-se com a hipótese do silêncio, não há como ignorar que são situações bastante diversas a notificação pessoal do proprietário seguida de silêncio, da inexistência de manifestação por estar o vendedor em local incerto e não sabido.

 

A fé pública do registrador imobiliário, além do seu dever de diligência decorrente da legalidade e segurança jurídica inerentes à atividade registral, atestará a não localização do vendedor, o que, apesar de não se tratar de uma ausência civil formal, demonstra que não é possível ao promissário comprador obter a escrituração definitiva, trazendo a adjudicação compulsória extrajudicial como saída célere e segura.

 

A base de dados da serventia e da própria ONR, assim como os elementos trazidos pelo promissário comprador, fornecerão ao registrador imobiliário os subsídios para buscar a efetiva notificação e, não obtendo êxito, certificar estar o promitente vendedor em local incerto e não sabido, autorizando o prosseguimento do procedimento.

 

Em que pese possa parecer que as soluções mencionadas acima possam parecer  simplistas, são o supedâneo necessário para delimitar uma regulamentação em face da adjudicação compulsória extrajudicial.

 

Isto porque são situações fáticas comprováveis que dispensariam qualquer outro elemento, trazendo o permissivo necessário ao registrador de imóveis para consolidar a propriedade em nome do requerente. Veja-se que tanto no caso da morte, ausência ou localização incerta e não sabida da pessoa natural, quanto na extinção da pessoa jurídica, é possível que seja levado ao registro de imóveis um documento comprobatório: a certidão de óbito, o registro do órgão competente demonstrando a extinção da sociedade, a certificação da não notificação frustrada, entre outros.

 

Portanto, essa seria a primeira vertente disciplinar para retirar da citada zona cinzenta os casos em que comportam adjudicação compulsória. Nesse sentido, não se esquece da existência dos inventários de pessoa falecida ou, ainda, das ações judiciais de falência, mas em ambos os casos, não há como opor ao requerente que já trouxe elementos de seu Direito a investigação sobre circunstâncias póstumas, sendo que em ambos os casos as respectivas ações de fim das personalidades (física ou jurídica) teriam que já ter cotejado a situação do imóvel adjudicado, o que sempre é possível de ser resgatado a qualquer tempo.

 

1.3.2 – Da comutação do procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial em procedimento de usucapião extrajudicial 

 

De proêmio, importa relembrar do que se trata, em direito reais, a usucapião, o que é mais bem explicado pela professor Maria Helena Diniz

 

“Usucapião é modo originário de aquisição da propriedade, pois a relação jurídica formada em favor do usucapiente não deriva de nenhuma relação do antecessor. Uma propriedade desaparece e a outra surge, porém, isso não significa que ela se transmite5”

 

Sob o lastro da definição jurídica de que usucapião é uma forma de aquisição originária da propriedade, é possível asseverar que, no momento em que o imóvel é usucapido, há um corte na regra de continuidade registraria, fazendo com que o fólio registral se reestabeleça a partir do usucapiente e dele se reinicie a sequência cronológica de transmissão da propriedade.

 

Essa compreensão é de suma importância para distanciar esse procedimento em relação à adjudicação compulsória, pois neste não existe um reset da matrícula, mas tão somente a forçosa continuação da transmissão da propriedade.

 

Seguindo o atual Código Civil, diversas são as possibilidades de usucapir um imóvel, mas todas elas trazem elementos objetivos que permitem essa interrupção da sequência registral sem futuro questionamento judicial. Um desses critérios mais firmes é a determinação de lapsos temporais que o requerente da propriedade deve estar imiscuído na posse. A título de exemplo, duas são as modalidades de usucapião mais frequentes:

 

Usucapião extraordinária

 

Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.

 

Parágrafo único. O prazo estabelecido neste artigo reduzir-se-á a dez anos se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

 

Usucapião ordinária

 

Art. 1.242. Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, contínua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos.

 

Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico.

 

Todo esse desenho da disciplina civil sobre a usucapião, permitiu a criação de uma forma extrajudicial para alcançar o mesmo propósito e, essa métrica só foi possível, porque há uma firma regulação sobre os requisitos para aquisição originária, conforme já revelado acima.

 

Assim, com a edição do novo Código de Processo Civil, pela lei 13.105/15, é alterada a lei 6.015/73, incluindo-se o artigo 216-A, que inaugura o procedimento da usucapião extrajudicial, regulamentado, em 14 de dezembro de 2017, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio do provimento 65.

 

Houve tanto cuidado na elaboração do procedimento de usucapião extrajudicial que hoje o referido artigo 216-A da lei 6.015/73, incluído por ocasião da reforma do CPC, traz a obrigatoriedade de citação do proprietário cartular para se manifestar em 15 dias e determina que seu silêncio será interpretado com concordância. Veja-se que aqui o legislador foi firme, mas a razão dessa firmeza está no restante da regulamentação acima referida, em especial, repita-se o prazo bem determinado para cada tipo de usucapião condicionada aos seus específicos requisitos. Ademais, deve-se lembrar que na usucapião extrajudicial a presença do advogado e do notário ao longo do procedimento dão solidez e ajudam na consecução dos fins do instituto.

 

Na adjudicação compulsória extrajudicial, por outro lado, o mesmo não ocorre no novel artigo 216-B. Dessa forma, não é possível fazer analogia entre os institutos e procedimentos, até porque neste caso não há, como dito, um corte na cadeia registraria condicionado a requisitos objetivos como na usucapião. E mais, na usucapião, o artigo 216-A, traz, ainda, no §10º, que, em caso de impugnação do pedido de reconhecimento extrajudicial de usucapião, o oficial de registro de imóveis remeterá os autos ao juízo competente da comarca da situação do imóvel, cabendo ao requerente emendar a petição inicial para adequá-la ao procedimento comum.

 

Depois disso, ainda vem a regulamentação infralegal do CNJ, que por meio do citado Provimento 65/17 prescreve especificidades para a matéria de registros públicos, criando um procedimento absolutamente hígido.

 

Assim, colocando o procedimento de adjudicação compulsória à luz do que foi acima resumido em termos de usucapião extrajudicial, vê-se que há uma longa distância em termos regulamentares.

 

O que se mostra com clareza solar é que um cidadão que busque seu direito por meio da força compulsória do Estado para ter a propriedade do bem imóvel, não deixa de ter também a possibilidade de, não conseguindo alcançar a adjudicação, recorrer ao instituto da usucapião, judicial ou extrajudicial. E quando isso deve ocorrer?

 

Pelo já demonstrado, quando o requerente da adjudicação compulsória extrajudicial não obtém êxito do consenso para lavratura da escritura pública, nem a negativa justificada do proprietário sobre a pretensão do adjudicante, além de não ter provado a impossibilidade de anuência, a opção que nasce é a da usucapião.

 

Não se pode ignorar a faculdade de o cidadão percorrer um caminho mais difícil, quando aquele plausível não foi exitoso. O registador de imóveis deve converter o procedimento de adjudicação compulsória em usucapião extrajudicial, se solicitado pela parte e atendidos os requisitos legais e normativos.

 

Muito embora possa se aventar que a usucapião extrajudicial tenha maior dificuldade prática, não pode ser esse a razão para o deferimento da adjudicação compulsória em face da omissão do proprietário tabular. Veja-se, a omissão do proprietário tabular como anuência é prevista estritamente para a usucapião.

 

Portanto, o que se demonstra aqui é que a omissão do proprietário em procedimento de adjudicação compulsória, afastadas as ressalvas já identificadas, deve ser lido como não adimplemento de requisitos para sua efetivação, fazendo com que possa o cidadão optar pela usucapião, que colima requisitos factíveis de considerar essa omissão.

 

Do exposto nesse tópico é possível abstrair outro primado, qual seja, se o proprietário cartular se omite, sem qualquer outra possibilidade de provar a impossibilidade de manifestação, o requerente pode converter o expediente em usucapião extrajudicial, caso sejam atendidos os requisitos desse procedimento, em especial o tempo de posse.

 

1.3.3 – Da migração do procedimento para esfera judicial

 

Nesse ponto, a explicação comporta pouco elocubração à luz do que já foi argumentado alhures, pois a ausência de manifestação do proprietário vendedor de imóvel objeto de adjudicação compulsória extrajudicial, sem a comprovação de sua impossibilidade de obtenção, exige que se dê maior oxigenação aos princípios do contraditório e ampla defesa, cujo ambiente propício e único é do Poder Judiciário.

 

Aqui, o que se encerra é que não há mais espaço para atuação extrajudicial, posto que nenhuma das modalidades consensuais ou previstas no ordenamento poderão ser atingidas, o que, inexoravelmente, invoca o último recurso ao cidadão que é o foro judicial. Afinal,  qualquer solução poderia ser invalidada também por procedimento judicial, o que causaria uma insegurança jurídica no expediente de adjudicação compulsória extrajudicial.

 

  1. CONCLUSÃO

 

O novel instituto encartado na lei 14.382/22 da adjudicação compulsória extrajudicial é sim uma inovação em prol da sociedade, pois tem potencial de desjudicializar parte dos expedientes que se propõem a consolidar a propriedade em nome de um compromissário comprador, que por motivos alheios a sua vontade, não consegue alcançar o compromitente vendedor para efetivar o negócio jurídico que lhe traria o direito real sobre a propriedade.

 

Entretanto, como visto, falta ao artigo 216-B da lei 6.015/73, incluído pela referida lei, as balizas sobre como deverá o registador de imóveis conduzir esse procedimento à luz da resposta do proprietário compromitente vendedor.

 

Assim, a conclusão que se retira do que foi exposto é que o novo instituto extrajudicial pode ser bem aproveitado se criada uma regulamentação infralegal que complemente, em nível de disciplina procedimental, as possibilidades jurídicas a que o oficial de registro de imóveis pode recorrer para dar legalidade à adjudicação compulsória.

 

Vale destacar que, no mais das vezes, o que se busca em um procedimento de adjudicação compulsória, até então feito exclusivamente de forma judicial, é anuência do vendedor para viabilizar a produção o título translativo da propriedade que, em regra, seria a própria escritura pública. Ora,  o que se persegue nesses expedientes judiciais é a comprovação de que o vendedor já faleceu ou, sendo pessoa jurídica, já se encontre extinta,  de forma que se evidencie a impossibilidade de conformação da vontade. Esses dois objetivos primeiros, por si só, são mais que suficientes para aliviar a carga oposta ao Poder Judiciário.

 

Por outro lado, em relação às demais circunstâncias que possibilitariam a substituição da vontade do compromissário vendedor, no processo de adjudicação compulsória, dependem de dilação probatória para dirimir conflitos entre as partes, razão pela qual não devem ser incluídas no procedimento extrajudicial.

 

Não se está aqui a simplesmente apontar dificuldades ou criar barreiras ao novo instituto, pelo contrário. O que se busca, após o longo aprendizado com divórcios, inventários e usucapiões extrajudiciais, é criar um regramento que viabilize e dê segurança para atuação registral e, mais importante, para as próprias partes. O direito de propriedade, na qualidade de direito fundamental, sempre será merecedor de especial atenção dos operadores do direito, notadamente dos notários e registradores. Nesse contexto, o que o presente se propôs foi trazer breves reflexões sobre o tema, objetivando ajudar a dar materialidade a adjudicação compulsória extrajudicial, levantando, ainda, questões que necessariamente precisarão ser enfrentadas para o sucesso do instituto.

 

Diante do exposto é possível sumular que há possibilidade de uma regulamentação, que preveja cinco possibilidades para o Oficial de Registro de Imóveis:

 

  1. O registrador de imóveis deve por fim ao procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial se o proprietário, promitente vendedor, concordar em outorgar a o direito de propriedade, sendo o expediente destinado a um tabelião de notas;

 

  1. O registrador de imóveis deve por fim ao procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial se o proprietário, promitente vendedor, discordar motivadamente com o procedimento, sendo o expediente destinado ao foro judicial;

 

  1. Circunstâncias que ensejam a continuidade do procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial:

 

3.1. O registrador de imóveis deve deferir o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial se o promitente comprador comprovar que proprietário, promitente vendedor, não mais existe, seja pela morte da pessoa física ou a extinção da pessoa jurídica, e os seus herdeiros/inventariante/liquidante se encontrem em local incerto ou não sabido.

 

3.2. O registrador de imóveis deve deferir o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial se o promitente comprador comprovar que proprietário, existente, ou seja,  não falecido/ausente/extinto, se encontrar em local incerto ou não sabido;

 

  1. O registrador de imóveis deve converter o procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial em procedimento de usucapião extrajudicial, caso não se obtenha resposta do proprietário, promitente vendedor, e estejam adimplidos os requisitos desse procedimento;

 

  1. O registrador de imóveis deve por fim ao procedimento de adjudicação compulsória extrajudicial, caso não se obtenha resposta do proprietário, promitente vendedor, e não seja possível a comprovação mencionada no item 3 ou a conversão em usucapião, devendo instruir a parte procurar a via judicial adequada.

 

Fonte: Migalhas

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