Em maio de 2022, a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) e a Academia Brasileira de Neurologia (ABN) posicionaram-se favoravelmente pela não implementação ou retirada da alimentação e hidratação artificiais de paciente em estado vegetativo crônico respeitada a sua vontade previamente manifestada.

 

Alguns meses depois, em agosto de 2022, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) aprovou a Resolução 355 que estabeleceu diretrizes éticas para auxiliar o médico na tomada de decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que enfrentam a fase final da vida, incluindo a retirada do suporte artificial de nutrição, por meio de dieta enteral ou parenteral, e hidratação.

 

A partir desses posicionamentos éticos e técnicos na área dos cuidados paliativos, torna-se relevante discutir, na perspectiva epistemológica do direito, os aspectos jurídicos da aplicação prática de tal medida no Brasil.

 

Para isso, este ensaio revisitará os fundamentos jurídicos de algumas decisões judiciais internacionais paradigmáticas sobre o tema e, em seguida, analisará as normas éticas e jurídicas vigentes nacionalmente, propondo um diálogo das fontes.

 

Fundamentos jurídicos do direito de recusar tratamento

 

Em 1969, um dos mais proeminentes advogados de direitos humanos do século XX, Luis Kutner, discutiu no artigo intitulado Due process of eutanásia: the living will, a proposal (1969) os problemas jurídicos decorrentes do não reconhecimento formal pela Constituição dos Estados Unidos do direito de paciente enfermo morrer se ela assim desejar. Dentre eles, destacou que tal lacuna poderia suscitar a interpretação de que uma pessoa com uma doença incurável ou terminal poderia ser obrigada a viver com dor e desespero, em razão do sofrimento causado por tal enfermidade.

 

Evidentemente, Kutner (1969) demonstrou que tal lacuna jurídica era incompatível com o Estado de Direito em face da violação ao direito constitucional à privacidade, entendido aqui como a capacidade da pessoa, fundada no direito à liberdade, de tomar as suas decisões fundamentais na sua esfera privada, sem a interferência do Estado.

 

De acordo com esse direito, entre as decisões fundamentais que o indivíduo teria capacidade para se autodeterminar, citam-se aquelas relacionadas, exemplificadamente, à orientação sexual, ao planejamento familiar e ao processo de morrer (LANGE, 2009).

 

Inconformado com esse cenário, Kutner (1969) propôs a elaboração prévia de um documento – o testamento vital – com base no consentimento informado, no qual o paciente permitiria a morte em virtude da inação médica caso se encontrasse em uma situação incurável e irreversível, de modo a evitar o prolongamento do seu sofrimento.

 

De acordo com o jurista, esse documento permite ao paciente recusar tratamento médico, podendo, inclusive, ser utilizado por pacientes Testemunhas de Jeová para a recusa de transfusão de sangue (KUTNER, 1969).

 

As diretivas antecipadas de vontade, gênero do qual o testamento vital constitui uma de suas espécies (WILLMOTT et.al., 2006), é usado, portanto, para estender a autonomia do paciente para além da sua capacidade (EMANUEL, 1991), sendo um instrumento jurídico válido para o exercício da recusa de tratamento médico quando o paciente se tornar incapaz de exercer a sua autodeterminação.

 

Casos judiciais paradigmáticos de direito de recusar tratamento

 

A tese jurídica proposta por Kutner passou então a ser utilizada em diversos julgamentos paradigmáticos nos Estados Unidos, como nos casos Quinlan e Cruzan.

 

Karen Ann Quinlan tinha 21 anos de idade quando foi internada, primeiramente, no Newton Memorial Hospital, Estado americano de New Jersey. Ela misturou bebida alcóolica com remédios para emagrecer e foi encontrada desacordada com parada cardiorrespiratória. Após alguns meses em estado vegetativo persistente, os pais de Quinlan solicitaram a retirada do tubo de ventilação artificial. Para isso, tiveram que ingressar na justiça, pois Quinlan não tinha feito as suas diretivas antecipadas. (PESSINI, 2004, p. 110).

 

A decisão judicial do processo In the matter of Karen Quinlan, proferida pelo Tribunal de New Jersey em 1976, ratificou que: i) o direito constitucional à privacidade autoriza a todo enfermo o direito de recusar tratamento médico; ii) a retirada do ventilador artificial – meio extraordinário de manutenção da vida – não configura crime; e iii) diante da inexistência de diretiva antecipada de vontade de paciente incompetente, poderá haver a sub-rogação da tomada de decisão terapêutica de suspensão ou não de meio extraordinário e artificial de manutenção da vida.

 

Essa decisão foi tão relevante que, de acordo com Lim (2005), marcou o nascimento do movimento “right to die”. Meisel e Cerminara (2004) esclarecem que o termo “direito de morrer” passou a ser amplamente utilizado pelos Tribunais, podendo ser combinado com as expressões “morte natural” ou “morte com dignidade”, e, eventualmente, podendo ser equiparado à eutanásia ou crime de misericórdia. Todavia, os autores rejeitam tal equiparação quando se referir a ação de ceifar a vida, reivindicando o conteúdo do right to die como direito de recusar tratamento médico.

 

Outro julgamento paradigmático a ser destacado é o caso Cruzan. Em 1983, quando tinha 25 anos de idade, Nancy Cruzan teve danos cerebrais significativos devido à falta de oxigenação no cérebro após sofrer um acidente de carro, permanecendo em estado vegetativo persistente. Passados cinco anos nessa condição, ante a situação de irreversibilidade, seus pais solicitaram judicialmente a suspensão do suporte de alimentação e hidratação artificiais para permitir a morte da filha, que também não tinha diretivas antecipadas. (LARSON, 2005).

 

Em 1990, em decisão histórica, a Suprema Corte dos Estados Unidos (EUA) reconheceu que: i) a suspensão da hidratação e alimentação artificiais em pacientes em estado vegetativo persistente inclui-se no direito de recusar tratamento médico e que esse, por sua vez, encontra-se fundado no direito constitucional à privacidade; ii) para o exercício daquele direito, os indivíduos adultos e capazes devem manifestar a sua vontade mediante a elaboração de diretivas antecipadas; e iii) para os incapazes de exercer a sua autonomia acerca da decisão de retirada da nutrição artificial, tornar-se necessária a apresentação de provas claras e convincentes do desejo do paciente (LO; STEINBROOK, 1991).

 

(Des)necessidade de comprovação do desejo de recusa do suporte artificial

 

Um dado relevante de ser retomado no caso Nancy Cruzan foi a exigência de apresentação de provas claras e convincentes do desejo da paciente para a retirada do suporte artificial de alimentação e hidratação.

 

Diferentemente do caso Quinlan, em que a liberdade de escolha para a tomada da decisão terapêutica foi sub-rogada aos representantes legais, no caso Cruzan, a comprovação inequívoca da vontade da paciente foi necessária para a recusa do tratamento.

 

Isso ocorreu em razão da exigência de tal comprovação pela Lei do Testamento Vital do Estado do Missouri, local onde ocorreu o caso Cruzan e tramitou o processo judicial. A Suprema Corte dos Estados Unidos foi então suscitada a decidir a constitucionalidade ou não de tal exigência.

 

Vale esclarecer acerca do caso Quinlan que a Suprema Corte dos Estados Unidos (COURT US, 1990) endossou a interpretação do Tribunal de New Jersey de que a única forma de garantir o respeito ao direito à privacidade de paciente incompetente, que não expressou os seus desejos de fim de vida em um testamento vital, seria sub-rogando o consentimento da retirada do suporte vital aos representantes legais.

 

Nesse sentido, a Suprema Corte afirmou:

 

Observando que o interesse do Estado [de preservação da vida do paciente] “se enfraquece e o direito do indivíduo à privacidade cresce à medida que o grau de invasão corporal aumenta e o prognóstico diminui”, o tribunal concluiu que os interesses do Estado tiveram que ceder nesse caso […] O tribunal também concluiu que a “única maneira prática” de evitar a perda do direito à privacidade de Karen devido à sua incompetência era permitir que seu tutor e família decidissem “se ela o exerceria nessas circunstâncias” (COURT US, 1990).

 

Apesar de ter concordado com a sub-rogação aos representantes legais da retirada do suporte vital, em relação ao caso Cruzan, a Suprema Corte dos Estados Unidos ratificou a decisão do Tribunal do Missouri, que decidiu que ninguém pode ordenar um tratamento que sustente o fim da vida de um paciente incompetente na ausência de um testamento vital válido ou de evidências claras e convincentes dos desejos do paciente (COURT US, 1990).

 

Assim, enquanto no caso Quinlan, o Tribunal reconheceu que a única forma de garantir o respeito ao direito à privacidade de paciente incompetente que não expressou os seus desejos de fim de vida em um testamento vital seria sub-rogando o consentimento aos representantes legais, no caso Cruzan, a Suprema Corte afirmou que uma pessoa incompetente não tem o mesmo direito constitucionalmente protegido que uma competente de recusar o tratamento que sustenta a vida. Logo, decidiu que, nesses casos, seria constitucional a exigência do Estado do Missouri de limitar o exercício desse direito, não sub-rogando à família a decisão pela retirada do suporte vital diante da ausência de diretivas antecipadas e exigindo provas claras e convincentes do desejo do paciente.

 

Verifica-se, portanto, que o direito de retirada de suporte vital, incluindo suspensão da nutrição e hidratação, poderá ser exercido por paciente incompetente que não fez as suas diretivas antecipadas se foram cumpridas as exigências da lei regulamentadora, tal como a comprovação inequívoca do desejo do enfermo.

 

Por outro lado, diante da ausência de requisitos específicos da lei regulamentadora das diretivas antecipadas, o direito de recusar tratamento médico do paciente em estado vegetativo que não registrou a sua vontade em um testamento vital poderá ser sub-rogado aos representantes legais.

 

Diretrizes da ANCP e CREMESP sobre a retirada da nutrição artificial

 

O posicionamento da ANCP e da ABN defendeu a legitimidade ética e jurídica da não implementação ou retirada de dieta em paciente em estado vegetativo crônico desde que: i) confirmada a irreversibilidade da condição vegetativa do paciente por equipe multiprofissional experiente (item 11); ii) evidenciado o desejo antecipado do paciente de não ser continuada a alimentação artificial por diretivas antecipadas de vontade ou por relatos de familiares e entes queridos do paciente (item 1); e iii) consentimento esclarecido do representante legal do paciente (item 22).

 

A partir das premissas internacionais expostas, verifica-se que as diretrizes do item 1 do posicionamento da ANCP e da ABN encontram amparo na tese jurídica proposta por Kutner e no caso judicial de Cruzan de recusa de alimentação e hidratação artificiais.

 

No entanto, o item 2 pode gerar equívocos de interpretação, ao vincular a retirada da dieta artificial do paciente em estado vegetativo à obrigatoriedade do consentimento do representante legal, tornando-se necessário tecer alguns apontamentos.

 

Em primeiro lugar, importa esclarecer que a participação dos familiares no processo deliberativo de não implementação ou retirada do suporte artificial de hidratação e nutrição – ainda que esteja condizente com o atual modelo de tomada de decisão compartilhada, que inclui a participação dos familiares do paciente no processo de deliberação terapêutica – não é suficiente, por si só, para a autorizar a limitação do suporte vital do paciente que não tenha deixado registrado a sua diretiva antecipada de vontade nesse sentido.

 

Como explicitado anteriormente, o interesse do Estado de preservar a vida do paciente diminui e o direito individual à privacidade do paciente cresce à medida que o grau de invasão corporal do suporte artificial aumenta e o prognóstico diminui. Logo, juntamente com o consentimento do representante legal (item 2), faz-se necessária a apresentação de diretivas antecipadas válidas ou provas claras e convincentes do desejo do paciente pela suspensão da alimentação e hidratação artificiais (item 1).

 

Em segundo lugar, a decisão do representante legal acerca da limitação do suporte de dieta artificial pode entrar em conflito com a diretiva antecipada do paciente ou mesmo com a decisão técnica da equipe multidisciplinar de cuidados paliativos em relação às medidas de conforto do paciente.

 

Se os conflitos entre a decisão dos familiares do paciente acerca da retirada do suporte vital e a decisão da equipe multiprofissional norteada pela boa prática clínica que repudia a obstinação terapêutica não forem conduzidos por uma comunicação efetiva, esses casos podem repercutir não somente na mídia como no judiciário.

 

À título exemplificativo, cita-se o caso do bebê inglês Charles Gard que, além de ter demandado várias decisões judiciais nacionais e até do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, provocou o pronunciamento do Vaticano e do então Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

 

Assim, Dadalto e Affonseca (2018) recomendam o aprimoramento das técnicas de comunicação entre equipe e os familiares, além de uma atuação mais empática da equipe de saúde, de modo que tais conflitos possam ser resolvidos sem a intervenção do Poder Judiciário.

 

Ainda sobre o conflito no processo deliberativo, importante apontar a possibilidade de divergência entre a recusa do suporte vital feita validamente no testamento vital pelo paciente e a decisão do representante legal. Nesses casos, a Resolução CFM 1.995/2012 determina a prevalência das diretivas antecipadas sobre o parecer de não médicos. Como fica então o item 2 do posicionamento da ANCP e da ABN? Deve simplesmente ser ignorado e descumprido?

 

Embora o consentimento dos familiares não seja o requisito obrigatório quando existir testamento vital nos termos da Resolução CFM 1.995/2012, a busca do consenso com o representante legal deve ser perseguida pela equipe de saúde para evitar a judicialização do caso, conforme solução apontada por Dadalto e Affonseca (2018).

 

Em relação à Resolução CREMESP 355/22 acerca da retirada do suporte artificial de nutrição e hidratação, foram elencados cinco requisitos para que a recusa seja considerada ética:

 

Art. 3º Para que a retirada de suporte artificial de vida (SAV) seja considerada eticamente aceitável em situações de futilidade terapêutica ou de tratamento potencialmente inapropriado, cinco pré-requisitos devem ser atendidos, a saber:

 

  1. O paciente em questão deve estar em fase terminal de enfermidade grave e incurável, identificada pelo seu médico responsável. Estas condições devem também ser diagnosticadas por outros dois médicos, sendo um destes médicos necessariamente especialista na área que causou a doença terminal e o segundo, médico atuante em área de cuidados paliativos.

 

  1. O objetivo da retirada do SAV é permitir a evolução da doença de maneira natural e com menor sofrimento até o momento do óbito.

 

III. A retirada do SAV é considerada tecnicamente adequada por dois médicos, além do médico responsável pelo paciente, o qual indicou os cuidados paliativos.

 

  1. A retirada do SAV está de acordo com a vontade do paciente, ou na sua impossibilidade, de seu representante legal.

 

  1. Todos os cuidados paliativos apropriados serão mantidos ou intensificados, visando o conforto do paciente e de sua família. (CREMESP, 2022).

 

Além disso, a Resolução CREMESP 355/22 rechaça a realização de tratamento fúteis (aquele “que, de acordo com melhor evidência científica disponível, mostre-se incapaz de atingir o objetivo biológico almejado” – art. 1º) ou tratamento potencialmente inapropriados (aquele “que, embora potencialmente capazes de atingir os objetivos fisiológicos, […] são altamente improváveis de resultar em sobrevivência digna, de acordo com os valores de vida e preferências de cuidado do paciente” – art. 2º), exigindo o consenso entre os envolvidos ou o envolvimento de equipes especialistas em cuidado paliativo e/ou comitês de ética/bioética (art. 2º).

 

Com base nas premissas internacionais explicitadas anteriormente, a Resolução CREMESP parece encontrar amparo na tese jurídica proposta por Kutner no caso de o paciente estar competente para a tomada de decisão, expressando a sua vontade pela recusa de tratamento.

 

Entretanto, no caso de paciente incapaz de decidir que não tenha deixado diretiva antecipada, resta questionar: a vontade do representante legal é juridicamente suficiente para autorizar a recusa do suporte artificial de alimentação e hidratação, tal como no caso Quinlan, sem a necessidade de apresentar provas claras e convincente do desejo do paciente, tal como exigido no caso Cruzan?

 

Para responder tal questionamento, necessário percorrer as normas brasileiras sobre o tema no próximo subtítulo.

 

Normas éticas e jurídicas nacionais sobre o direito de recusar tratamento médico

 

Em uma perspectiva nacional, torna-se relevante fazer uma interpretação sistemática das normas éticas e jurídicas vigentes no país sobre o direito de recusar tratamento médico, em especial a não implementação ou retirada de dieta artificial em paciente em estado vegetativo crônico, partir do diálogo de tais fontes.

 

Do ponto de vista da deontologia médica, o Conselho Federal de Medicina (CFM) possui diversas resoluções que legitimam eticamente o direito de recusar tratamentos obstinados ou fúteis.

 

A Resolução CFM 1.805/06 permitiu aos médicos a limitação e a suspensão de tratamentos que “prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal”. Já a Resolução CFM 1.995/12 regulamentou as diretivas antecipadas de vontade em prontuários médicos como instrumento para rejeição de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do paciente sem trazer benefícios. Recentemente, a Resolução CFM 2.232/19 definiu expressamente a recusa terapêutica como direito do “paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente” (art. 2º).

 

A interpretação sistemática dessas resoluções demonstra que tem legitimidade ética para fazer as suas diretivas antecipadas o paciente competente para a tomada de decisão terapêutica, incluindo a recusa de suporte artificial de alimentação e hidratação, quer expressando os seus desejos de cuidados e tratamentos, quer indicando um representante para a substituição do seu consentimento.

 

Ademais, verifica-se também que, diante da ausência de diretivas antecipadas de paciente que se tornou incapaz de tomar as suas decisões terapêuticas, a Resolução CFM 1805/06 permitiu a retirada de tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade de seu representante legal.

 

Portanto, na perspectiva da deontologia médica, vontade do representante legal é eticamente suficiente para autorizar a recusa do suporte artificial de alimentação e hidratação, tal como no caso Quinlan.

 

Do ponto de vista jurídico, diante da ausência de uma lei federal regulamentadora específica dos direitos dos pacientes ou das diretivas antecipadas de vontade do paciente, resta fazer o diálogo de diversas fontes do direito para a elucidação do questionamento anteriormente formulado.

 

A Lei Orgânica da Saúde, lei 8.080/90, determina que as ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Únicos de Saúde (SUS) devem obedecer ao princípio, entre outros, da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral (art. 7º, III).

 

Já a Lei do Estado de São Paulo 10.241, de 17 de março de 1999, considerada um marco legislativo aos direitos dos pacientes, estabelece como direitos dos usuários dos serviços de saúde (art. 2º):

 

VII – consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados;

 

[…]

 

XXIII – recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida.

 

Ainda no âmbito do sistema de saúde brasileiro, a Carta dos Direitos e Deveres da Pessoa Usuária da Saúde, disposta na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 533, de 09 de agosto de 2017, estipula:

 

Terceira diretriz: […]

 

  • 11. E’ direito da pessoa, na rede de serviços de saúde, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude de idade, raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, estado de saúde, de anomalia, patologia ou deficiência, garantindo-lhe:

 

[…]

 

VI – a informação a respeito de diferentes possibilidades terapêuticas de acordo com sua condição clínica, baseado em evidências e a relação custo-benefício da escolha de tratamentos, com direito a` recusa, atestado pelo usuário ou acompanhante;

 

[…]

 

VIII – o direito a` escolha de tratamento, quando houver, inclusive as práticas integrativas e complementares de saúde, e a` consideração da recusa de tratamento proposto;

 

De acordo com a interpretação doutrinária do direito civil brasileiro, existem alguns enunciados normativos sobre o tema elaborados no bojo das Jornadas de Direito Civil, organizadas pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ) do Conselho da Justiça Federal (CJF). São eles:

 

Enunciado 528 da V Jornada de Direito Civil (2012)

 

Arts. 1.729, parágrafo único, e 1.857: E’ válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado “testamento vital”, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade.

 

Enunciado 533 da VI Jornada de Direito Civil (2013)

 

O paciente plenamente capaz poderá deliberar sobre todos os aspectos concernentes a tratamento médico que possa lhe causar risco de vida, seja imediato ou mediato, salvo as situações de emergência ou no curso de procedimentos médicos cirúrgicos que não possam ser interrompidos. Art.: 15 do Código Civil.

 

Por fim, no âmbito judicial, importante citar as duas decisões judiciais com validade em todo o território nacional que ratificaram a constitucionalidade e legitimidade jurídica das Resoluções CFM 1805/06 e 1995/12, com base nos princípios e regras constitucionais e legais hodiernamente vigentes, em especial o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e a vedação constitucional de tratamento desumano e degradante (respectivamente, art. 1º, III, e art. 5º, III, da Constituição Federal de 1988 – CF/88).

 

Além destes dispositivos constitucionais citados nas decisões judiciais, aponta-se ainda o princípio da legalidade (art. 5º, II – “II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”) cumulado com o princípio da privacidade (art. 5º, X – “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”).

 

Como o princípio da legalidade está intrinsecamente ligado ao direito à liberdade, sendo a lei uma garantia da liberdade do particular, que pode fazer tudo aquilo que a lei não proibir, depreende-se, à luz da tese jurídica de Kutner já explicitada, que a liberdade do paciente de tomar as suas decisões fundamentais na sua esfera privada – incluindo aquelas decisões relacionadas à recusa de suporte vital, como a alimentação e hidratação artificiais, em que não legislação proibitiva – encontra amparo no direito constitucional brasileiro.

 

Do diálogo entre as fontes da dogmática jurídica brasileira e da deontologia médica nacional, conclui-se que o direito de suspensão da nutrição e hidratação artificiais poderá ser exercido de forma compartilhada com a equipe de saúde:

 

  1. i) por paciente com capacidade civil plena por meio exercício da sua autonomia;
  2. ii) por paciente incompetente que exprimiu antecipadamente a sua vontade em suas diretivas de vontade;

iii) pelo representante quando expressamente indicado nas diretivas antecipadas de paciente;

  1. iv) pelo representante de paciente incompetente que não deixou diretivas antecipadas.

Em relação ao último item supracitado, a decisão de limitação de suporte vital pelo representante de paciente incompetente que não deixou diretivas antecipadas justifica-se com base na ausência de lei federal regulamentadora e, consequentemente, pela ausência de proibição legal da suspensão do suporte artificial de alimentação e hidratação.

 

Sobre isso, vale esclarecer que, não obstante a eutanásia e o suicídio medicamente assistido sejam considerados crime de homicídio privilegiado (art. 121, parágrafo 1º, Código Penal) e crime de auxílio ao suicídio (art. 122 do Código Penal), respectivamente, a suspensão do suporte artificial de alimentação e hidratação não é tecnicamente enquadrada nesses tipos penais.

 

Ao contrário, como já explicitado nas decisões judiciais dos casos Quinlan e Cruzan, é considerada recusa de tratamento médico amparada pelo direito constitucional à privacidade. Nesse sentido, importante citar trecho do julgamento do caso Cruzan:

 

[…] as técnicas usadas ou não para passar alimentos e água para o trato alimentar do paciente são chamadas de “tratamento médico”, porque todas elas envolvem algum grau de intrusão e contenção. Alimentar um paciente por meio de um tubo nasogástrico requer que um médico passe um tubo longo e flexível pelo nariz, garganta e esôfago do paciente e no estômago. Por causa do desconforto que tal tubo causa, “todos os pacientes precisam ser contidos à força e suas mãos colocadas em luvas grandes para evitar que eles removam o tubo” […] Um tubo de gastrostomia (como foi usado para fornecer comida e água a Nancy Cruzan […] ou tubo de jejunostomia que tem ser implantado cirurgicamente no estômago ou intestino delgado […] Exigir que um adulto competente se submeta a tais procedimentos contra sua vontade sobrecarrega a liberdade, a dignidade e a liberdade da paciente para determinar o curso de seu próprio tratamento. Assim, a liberdade garantida pela Cláusula do Devido Processo deve proteger, se proteger alguma coisa, a decisão profundamente pessoal de um indivíduo de rejeitar o tratamento médico, incluindo a entrega artificial de alimentos e água. (COURT US, 1990).

 

Portanto, tal como no caso Cruzan, se houvesse uma exigência legal a restringir o direito de recusa terapêutica, que no ordenamento jurídico brasileiro se encontra ancorado dos princípios da privacidade cumulado com o da legalidade, é provável que a decisão, por si só, do representante de paciente incompetente que não deixou diretivas antecipadas não fosse juridicamente suficiente.

 

Entretanto, tal como no caso Quinlan, diante da ausência de lei regulamentadora das diretivas antecipadas, as fontes acima elencadas mostram-se ética e juridicamente suficientes para fundamentar o direito de suspensão da alimentação e hidratação artificiais de paciente em estado vegetativo que não registrou a sua vontade em um testamento vital.

 

Fonte: Migalhas

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