A Medida Provisória nº 1.085, de 27 de dezembro de 2021, já aprovada na Câmara, tem causado intenso debate entre estudiosos de Direito Notarial e Registral. Além de prever a criação do “Sistema Eletrônico de Registros Públicos” (Serp), a MP também altera diversos diplomas atinentes aos registros públicos. Apesar da intenção “desburocratizante” e modernizadora da medida, o que se observou foi, em verdade, conjunto de inconstitucionalidades e ilegalidades em seu texto inicial.

 

As funções notarial e registral, previstas na Constituição Federal como diversas e diferenciadas, por força do artigo 236, são públicas. Privado e pessoal — por delegação — é o exercício das atribuições. Consistem em “serviço público”, de maneira que o Estado delega essas funções aos particulares e fiscaliza suas atividades por meio do Poder Judiciário, conforme o §1° do referido dispositivo.

 

Portanto, atente-se: o Estado é titular do monopólio do serviço, o que se traduz em poder-fim. O Estado tem o poder de edificar os mecanismos e estruturas para consecução do serviço que possui, como finalidade, a persecução do bem comum. Uma das principais funções de notários e registradores, exclusivamente por conta dessa delegação estatal, é certificar a fé pública. Comprovar a autoria, autenticidade e certeza dos atos — inclusive da assinatura digital — está no centro de gravidade da função notarial: dotar documentos e assinaturas de fé pública.

 

Todavia, a MP 1.085 subverte primados basilares do regime jurídico dessas atividades, especialmente a fé pública. Uma dessas ilegalidades merece destaque: a banalização da assinatura eletrônica para questões que envolvam Direitos Reais.

 

O artigo 11 da MP, ao alterar a Lei de Registros Públicos (Lei nº 6.015/73), modifica o artigo 17 desse diploma e passa a prever a possibilidade de assinatura eletrônica na modalidade “avançada” para acesso ou envio de informações aos registros públicos, quando realizados via internet, para além da assinatura eletrônica “qualificada”. A MP faz alteração semelhante no bojo de seu artigo 15, ao alterar também a Lei nº 11.977/09. Com isso, alça a “assinatura avançada” à condição de fonte de inquietação e desconfiança.

 

A preocupação decorrente dessa flexibilização reside no aumento exponencial dos riscos de fraude no momento da lavratura dos atos e do subsequente registro, isto é, riscos à segurança do usuário, quando da utilização da assinatura avançada. Isso porque, sem a identificação e autenticação fidedignas e confiáveis das partes, o ato notarial eletrônico fica, facilmente, sujeito a irregularidades. Tal resultado conflita com a função primordial da atividade notarial: conferir segurança jurídica aos atos lavrados, mediante a certificação da fé pública. Acatar a flexibilização da MP, portanto, é o mesmo que desconfigurar, completamente, a sistemática de responsabilidades e atribuições constitucionais dos órgãos que conferem fé pública.

 

O modelo de assinatura eletrônica qualificada permite que haja maior segurança no registro, pois está subsumido a uma Autoridade Certificadora de raiz única: o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI), autarquia federal vinculada à Casa Civil. O certificado digital emitido pela Autoridade Certificadora credenciada na ICP-Brasil — diversamente do que ocorre com a “assinatura avançada” — é o único que atende às exigências da legislação vigente (artigo 3º, IV, da Lei nº 14.063/20). Apesar do nome “assinatura avançada”, o que o marco legal, não revogado pela MP 1.085, revela é que esse tipo de assinatura, por não contar com as mesmas garantias, padrões e procedimentos da assinatura eletrônica qualificada, tem de “avançado” apenas o nome. É jurídica e tecnologicamente, a bem dizer, uma assinatura “atrasada”, se comparada àquela certificada pela ICP-Brasil.

 

A assinatura qualificada possui centralização em cadeia hierárquica, o que atribui maior rigor à identificação e certificação do usuário que assina o documento. A Autoridade também supervisiona referida cadeia, corroborando essa preocupação com a segurança do negócio jurídico. Não pode haver dúvida razoável de que a assinatura eletrônica qualificada é a que possui maior confiabilidade e aderência aos princípios inerentes à fé pública.

 

Diferentemente, a modalidade de assinatura avançada não está sujeita a essa autoridade certificadora de raiz única. Por essa razão, torna-se mais difícil supervisionar e rastrear a origem da assinatura. Ao se falar em registros públicos e no rigor que nosso ordenamento jurídico confere à matéria, é evidente que o modelo de assinatura “avançada” é incompatível com a segurança exigida pela atividade notarial e registral. Ele salta etapas, suprime procedimentos e enfraquece modelos de controle tecnológicos essenciais à atividade notarial, como (i) identificar e associar a pessoa que está assinando e a fidelidade da assinatura; (ii) rastrear e atestar a veracidade da manifestação da vontade; e (iii) verificar se não ocorre vício que macule o papel do terceiro imparcial que deve, agora, atestar o próprio processo tecnológico da nova versão eletrônica da fé pública da assinatura.

 

Ademais, a discussão sobre o rigor de cada modalidade de assinatura, bem como as hipóteses de utilização de cada uma delas, já foi objeto da MP 2.200, posteriormente convertida na Lei nº 14.063/20. O artigo 5º, § 2º, IV, do referido diploma atesta a obrigatoriedade da assinatura eletrônica qualificada nos casos de transferência e de registro de bens imóveis. Ressalta, ainda, que “a assinatura eletrônica qualificada é a que possui nível mais elevado de confiabilidade a partir de suas normas, de seus padrões e de seus procedimentos específicos”, nos termos de seu artigo 4º, III, § 1º. Não há razão para se rediscutir algo positivado há tão pouco tempo e, pior: no sentido de expandir incertezas e fragilizar a fé pública.

 

Tamanha é a banalização da assinatura eletrônica na modalidade adotada pela MP que, ao se discutir a matéria na Câmara dos Deputados, no último dia 5, sugeriu-se Emenda, no próprio Plenário, para se observar e obedecer a atribuição da Corregedoria do CNJ em regulamentar o uso de assinaturas avançadas nos atos envolvendo imóveis, nos termos dos dispositivos da Lei nº 14.063/20 citada acima. A Emenda não foi aceita, mas o alerta e o temor foram gritantes.

 

Além das ilegalidades apontadas no presente artigo sobre a MP 1.085, outras já vem sendo discutidas na mídia e na comunidade jurídica em geral, especialmente em relação às suas incompatibilidades com a LGPD e o próprio Sistema Brasileiro de Defesa do Consumidor. Aqui, buscou-se, tão somente, elencar breves pontos que chamam a atenção dos especialistas em Direito Notarial e Registral. Apenas pelos argumentos ora trazidos, uma certeza surge no horizonte: urgente a rejeição ou a perda de eficácia da MP 1.085, como prescreve o artigo 62, § 11, da Constituição Federal.

 

A pretexto de simplificar negócios imobiliários, a MP 1.085, se convertida em Lei, abrirá perigosa fenda na direção de paradoxal e inconstitucional “privatização” da fé pública, degradação da responsabilidade da função notarial e expansão da insegurança na circulação de direitos de propriedade.

 

Fonte: Conjur

Deixe um comentário