Se regulação sucessória representa um tabu para a maioria, não seria diferente com um instituto a ela correlato
O testamento vital ou biológico (“living will”), também conhecido como declaração ou diretiva de vontade antecipada, consiste no ato jurídico por meio do qual o declarante manifesta, prévia e expressamente, o desejo de receber ou não determinado tratamento ou cuidado médico futuramente, no momento em que estiver incapacitado para expressar livremente a sua vontade[1]. Ainda, é possível designar um representante para tal fim por meio de mandato duradouro[2].
Claramente, trata-se de instituto dotado de relevância jurídica, estando fundado no princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal), na própria autonomia da vontade e na proibição de tratamento desumano (art. 5º, III, da CF). Todavia, por se tratar de algo relativamente novo no Brasil, sua utilização ainda não é tão comum.
De fato, se os temas que envolvem regulação sucessória representam um enorme tabu para a grande maioria da população, como se o planejamento avocasse a morte — mesmo que essa seja única certeza da vida —, não seria diferente em se tratando de um instituto a ela correlato.
Entre nós, ainda não existe legislação específica sobre o testamento vital. Porém, a exemplo dos Códigos de Ética Médica italiano[3], espanhol[4] e português[5], o Conselho Federal de Medicina brasileiro (CFM), entidade autárquica que possui atribuições constitucionais de fiscalização e normatização da prática médica, disciplinou administrativamente o tema por meio da Resolução nº 1995/2012, sob a denominação de “Diretivas Antecipadas de Vontade dos Pacientes”, permitindo ao paciente registrar a sua vontade na ficha médica (art. 2º, § 4º)[6].
Não obstante haja decisão judicial reconhecendo a constitucionalidade dessa resolução[7], visando a colocar o Brasil em condições de igualdade com outros países ou territórios que contam com legislação sobre o tema, a exemplo dos Estados Unidos da América, Argentina, Uruguai, Porto Rico e de diversos Estados integrantes da União Europeia[8], tramita junto ao Senado Federal o Projeto de Lei (PLS) nº 149/2018, estando atualmente em discussão na Comissão de Assuntos Sociais.[9]
Assim, apesar de não haver ainda norma legal específica admitindo o testamento vital no Brasil, “uma interpretação integrativa das normas constitucionais e infraconstitucionais concede aparato para a defesa da validade do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro”, como observa Luciana Dadalto[10].
Não por outro motivo, na 5ª Jornada de Direito Civil, o Conselho da Justiça Federal aprovou o Enunciado nº 528, o qual estabelece que: “É válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado ‘testamento vital’, em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de saúde, ou não tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade”[11].
É preciso advertir, contudo, que o testamento vital não pode ser confundido com a eutanásia, já que o médico não pratica nenhum ato para interromper a vida. Ao atuar em consonância com as diretivas antecipadas de vontade do paciente, o médico apenas leva a efeito a posição daquele que não pretende submeter-se a tratamentos que apenas prolongariam, de forma artificial, angustiante e dolorosa, a sua vida. O testamento vital, além de afastar os procedimentos médicos desnecessários, também evita que o médico seja processado por não ter oferecido tratamento a paciente em fase terminal, conforme solicitado por meio desse documento[12].
Em verdade, não se pode esquecer que a dignidade da pessoa humana constitui valor-guia do Estado brasileiro e toda a ordem jurídica (CF, art. 1º, III), não se podendo concebê-la “sem referência ao poder de autodeterminação” do indivíduo.[13]. Com efeito, essa autodeterminação consciente e responsável da própria vida constitui um mínimo inatacável que qualquer estatuto jurídico (lei, contrato, etc.) deve assegurar[14]. Assim, enquanto manifestação da dignidade humana, as diretivas antecipadas de vontade do paciente devem ser respeitadas pelo médico, o qual não incorrerá em infração ao seguir diretivas compatíveis com os preceitos do Código de Ética Médica (§ 2º, do art. 2º da Resolução nº 1995/2012 do CFM).
Além disso, o cumprimento, pelo médico, de diretiva antecipada de vontade, no mais absoluto respeito à dignidade da pessoa humana, não poderia ser qualificado como comportamento antijurídico ou desencadeador da responsabilidade civil médica, como já reconheceram alguns tribunais estaduais[15].
Por outro lado, o descumprimento da diretiva antecipada de vontade caracteriza conduta omissiva do médico, em inobservância ao dever contratual e legal e violação à autonomia da vontade do paciente. Assim, se verificados os pressupostos tradicionais da responsabilidade civil, quais sejam, conduta, nexo de causalidade, dano e a culpa[16], o médico deverá ser responsabilizado. O próprio Código de Ética Médica (Resolução nº 2.217/2018 do CFM) dispõe que é vedado ao médico: praticar ou indicar atos médicos desnecessários (art. 14); deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo (art. 24); deixar de respeitar a vontade de qualquer pessoa, considerada capaz física e mentalmente (art. 26); desrespeitar a integridade mental do paciente (art. 27); desrespeitar o interesse do paciente (art. 28); desrespeitar o direito do paciente decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas (art. 31).
Quanto à sua natureza jurídica, o testamento vital claramente não se enquadra na categoria jurídica do testamento comum, porquanto esta última figura é destinada a produzir efeitos somente após a morte. Em verdade, considera-se o testamento vital como espécie de negócio jurídico, conforme posicionamento de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho[17], pois o indivíduo expressa antecipadamente a sua vontade destinada à produção de efeitos jurídicos desejados enquanto ainda estiver vivo.
Diversamente de um testamento comum, ato solene e complexo, a validade da declaração de vontade antecipada não depende de forma especial (art. 107 do CC)[18]. Como explica Diaulas Costa Ribeiro em sede doutrinária, quatro alternativas se apresentam ao declarante para formalização da sua vontade: (a) uma escritura pública feita em cartório; (b) uma declaração escrita constante de instrumento particular (ou seja, “uma simples folha de papel assinada, de preferência com firma reconhecida”); (c) uma declaração feita pelo paciente a seu médico assistente, devidamente registrada em seu prontuário; (d) uma declaração das diretivas antecipadas aos amigos e familiares, quando o paciente não teve a oportunidade de elaborar documento formal (“justificação testemunhal da vontade”).[19] É inegável que a primeira alternativa é a que oferece maior segurança jurídica ao declarante, consoante demonstra Luciana Dadalto.[20]
Do ponto de vista material, em um contexto jurídico de promoção da dignidade da pessoa humana, de igualdade e autodeterminação, com plena vigência do Estatuto da Pessoa com Deficiência (L. 13.146/2015), nada obsta ao alargamento de tais diretivas. A despeito do Enunciado nº 37 da I Jornada de Direito da Saúde realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[21], aliás, fortemente criticado pela doutrina especializada em razão de seu caráter atécnico e restritivo[22], não há motivo para limitar o testamento vital ao âmbito terapêutico.
Nesse sentido, propõe-se que a declaração antecipada de vontade não se restrinja à recusa da obstinação terapêutica e à manutenção da existência em razão de aparelhos ou tratamento terapêutico agressivo, podendo avançar sobre outras questões que envolvam a manutenção de uma vida livre e de acordo com o desejo do declarante, por exemplo: onde receber tratamento; se fará fisioterapia; se deseja receber a visita de alguém; como gosta de se vestir; seu corte de cabelo e barba; onde deseja passar seus últimos dias; como será seu funeral.
Por não vigorar, quanto aos negócios jurídicos, o princípio da tipicidade, os particulares têm ampla liberdade para instituir novas hipóteses não contempladas em lei, contanto que sem afrontar o ordenamento jurídico. Assim, a declaração de vontade antecipada e sua ampliação para além do âmbito estritamente terapêutico não se afigura nula.
Não se desconhece que o alvo central da declaração de vontade antecipada é a garantia de uma morte digna. Contudo, ciente de que a situação de incapacidade decorrente de doenças terminais não é sinônimo de morte instantânea, diretivas mais detalhadas do declarante, de acordo com a sua concepção de vida digna, podem servir inclusive de diretrizes a serem observadas eventualmente pelo apoiador, no processo de tomada de decisão apoiada (nos termos do art. 1.783-A do Código Civil) ou pelo curador, em eventual processo de interdição (CPC, arts. 747 e seguintes) que venha a se tornar necessário.
Sem dúvida, há muito o que se avançar em relação à declaração de vontade antecipada como categoria jurídica, mas somente um debate plural e democrático, no qual se insere a presente proposta, possibilitará a evolução e amadurecimento desse instituto rumo a sua completa legalização.
Fonte: Jota
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