Os efeitos do divórcio ou do rompimento de união estável de um dos sócios de sociedade limitada é tema recorrente quando da elaboração de contrato social ou de acordo de sócios. Trata-se de uma das temáticas envolvendo família, empresa e patrimônio, e que aponta medidas  para mitigar efeitos não desejados pelos sócios nestes casos.

 

O arcabouço legal dos reflexos societários do divórcio ou do rompimento de união estável mantida por um sócio tem sua base estabelecida no artigo 1.027, do Código Civil (CC/02), segundo o qual “os herdeiros do cônjuge de sócio, ou o cônjuge do que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade”.

 

Tal previsão, conforme aponta a doutrina societária, visa a “impedir que vicissitudes pessoais dos sócios pudessem influir na exploração da atividade social” [1]. A lógica é de que os cônjuges ou companheiros dos sócios não são sócios e, deste modo, não têm o direito, uma vez dissolvido o casamento ou a união estável, de solicitar a dissolução de vínculo de sócio (porque sócios não são), e tampouco a apuração dos haveres.

 

Nos termos do artigo 1.027, do CC/02, portanto, na ocorrência da dissolução do casamento ou da união estável, o ex-cônjuge ou companheiro do sócio não ingressa, via de regra, na sociedade como sócio e não pode postular a liquidação dos haveres quando da ocorrência do rompimento da relação. Em razão dessas características, a doutrina e jurisprudência majoritárias têm reafirmado que o ex-cônjuge ou ex-companheiro, que tem direito à meação de participação societária, não tem o direito à titularidade das quotas, ou seja, de ingressar na sociedade na qualidade de sócio, mas sim tornar-se “sócio do sócio” [2] [3], já que receberá a parcela da meação com os aspectos patrimoniais das quotas [4] (como, por exemplo, os lucros), não se englobando remuneração pessoal (como o pró-labore, pago aos administradores [5] e não atingindo os direitos de cunho político decorrentes do status socii [6]. Sobre essa previsão legal, há de contextualizar dois aspectos, um no âmbito do Direito de Família, e outro no âmbito de Direito Societário.

 

Sob a perspectiva do Direito de Família, o pleito de meação sobre a participação societária deve observar o regime de bens da relação, de modo que o presente estudo tem por objetivo analisar as repercussões do rompimento do relacionamento sobre a sociedade quando o ex-cônjuge ou ex-companheiro tem direito à meação sobre a participação societária de determinado sócio de uma sociedade limitada. Independentemente do regime de bens do casal, no entanto, pode ser acordada entre os ex-cônjuges/companheiros outra forma de distribuição patrimonial, considerando a totalidade do patrimônio do casal e não apenas o recorte das quotas de determinada sociedade.

 

Sob o ponto de vista do Direito Societário, cabe referir que o artigo 1.027, do CC/02, está inserido no âmbito das sociedades simples, cujas regras são aplicadas supletivamente às sociedades limitadas (artigo 1.053, do CC/02), mas podendo os sócios preverem expressamente no contrato social a aplicação supletiva da Lei das Sociedades Anônimas. Como no âmbito do CC/02 é possível a previsão de restrição ou livre cessão das quotas, tal fato é relevante para indicar a natureza da sociedade limitada, se contratual/intuitu personae ou de capital/intuitu pecuniae. Caso os sócios estipulem que as quotas podem ser cedidas livremente a terceiros, conferindo natureza intuitu pecuniae à sociedade, esse fato poderia ser utilizado como argumento pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro para pleitear o ingresso na sociedade na qualidade de sócio. Porém, caso o contrato seja omisso em relação ao tema, aplica-se a regra geral de que a cessão de quotas para terceiro deverá ter aprovação de mais de 75% do capital social (artigo 1.057, do CC/02). Neste último caso, mais comum na prática, considera-se que há um impedimento do ingresso do ex-cônjuge ou companheiro na sociedade [7], exceto se houver aprovação dos demais sócios, por faltar vínculo de pessoalidade.

 

A eventual participação do ex-cônjuge ou do ex-companheiro do sócio na sociedade limitada restringe-se, como visto acima, à condição de “sócio do sócio”, concorrendo, nos regimes de bens comunheiros, no recebimento da divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade.

 

Pode-se cogitar, ainda, em um cenário de partilha em que as quotas de uma sociedade restem atribuídas unicamente ao ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio, considerando, por exemplo, um acordo realizado pelo ex-casal. Neste caso, o eventual ingresso do terceiro na sociedade resta condicionado à concordância dos demais sócios, sendo mantido ao ex-cônjuge ou ex-companheiro o “direito à liquidação da quota ou das quotas sociais havidas na partilha dos bens do casal” [8].

 

Importante evidenciar a discussão quanto ao momento em que o ex-cônjuge ou ex-companheiro poderia receber o valor equivalente à sua meação sobre a participação societária do outro.

 

De um lado, a redação do artigo 1.027, do CC/02, determina a impossibilidade de que o ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio exija da sociedade o que lhe couber no que concerne aos haveres da quota social partilhada, senão quando a própria sociedade entrar em liquidação, podendo até lá concorrer à divisão periódica dos lucros.

 

De outro lado, o parágrafo único do artigo 600 do Código de Processo Civil (CPC/15), ao dispor sobre a ação de dissolução parcial de sociedade, confere legitimidade ativa para tal pleito ao ex-cônjuge ou ex-companheiro, nos seguintes termos: “O cônjuge ou companheiro do sócio cujo casamento, união estável ou convivência terminou poderá requerer a apuração de seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por este sócio”.

 

Sobre a doutrina societária, há menção de que o artigo do CPC/15 trata de direito material, o que não deveria constar em lei que aborda matéria processual, além de que o referido artigo nada aborda acerca do herdeiro do ex-cônjuge ou companheiro, de modo que haveria dúvida se o legislador esqueceu dos herdeiros ou se houve apenas revogação parcial do artigo 1.027 do CC/02 [9].

 

A possibilidade de que o ex-cônjuge ou ex-companheiro exija desde logo a apuração dos haveres a que faz jus na sociedade em que não é sócio (apenas “sócio do sócio”) é reconhecida pela doutrina. Nesse sentido, entende-se pela possibilidade de que, inexistindo consenso quanto à apuração e liquidação dos haveres, possa o ex-cônjuge ou ex-companheiro (que não é sócio) propor a ação de dissolução parcial de sociedade imediatamente, pois, ainda que os sócios não possam “ser obrigados a entrar em sociedade com o cônjuge ou companheiro se assim não desejarem”, fato é que o ex-cônjuge ou ex-companheiro “tem direito ao pagamento do valor das quotas que possui” [10].

 

No mesmo sentido, tratando especificamente do caso de transmissão hereditária das quotas sociais, mas com possibilidade de extensão do entendimento às hipóteses de transmissão em virtude do término de relacionamento conjugal, Rodrigo Mazzei e Fernanda Bissoli Pinho justificam a possibilidade de imediata solicitação de apuração de haveres por parte do “sócio do sócio”, uma vez que não seria adequada a imposição de que os herdeiros tivessem de aguardar a liquidação da sociedade para que pudessem exercer efetivamente os direitos patrimoniais vinculados às quotas [11]. Consequentemente, a interpretação do artigo 1.027, do CC/02, deveria ser entendida restritivamente, estando apenas vinculada à impossibilidade de que os herdeiros do falecido sócio (e, no caso do presente estudo, o ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio) adjudicassem “as quotas para exercer, em substituição, a posição do sócio falecido, pois tal procedimento (…) é contrário à noção de affectio societatis” [12].

 

No âmbito da jurisprudência, ainda são escassas as decisões judiciais sobre o tema. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no julgamento da Apelação Cível nº 1024444-68.2019.8.26.0114, entendeu pela possibilidade de interpretação sistemática dos dispositivos do Código Civil e do Código de Processo Civil, reconhecendo que embora não se pudesse atribuir ao ex-cônjuge ou ex-companheiro a legitimidade para pleitear a dissolução parcial da sociedade da qual não é sócio (apenas “sócio do sócio”, como visto acima), seria a ele resguardada a possibilidade de pleitear a apuração de seus haveres, “calculados a partir da meação que detinha nas quotas do ex-marido na sociedade ré à época do trânsito em julgado da sentença de divórcio” [13].

 

A apuração de haveres, por sua vez, segue a regra geral de observância das disposições contratuais para sua quantificação. Nos termos da lei, somente em caso de omissão do contrato social é que devem ser aplicadas as disposições do artigo 606, do CPC, de acordo com o qual “o juiz definirá, como critério de apuração de haveres, o valor patrimonial apurado em balanço de determinação, tomando-se por referência a data da resolução e avaliando-se bens e direitos do ativo, tangíveis e intangíveis, a preço de saída, além do passivo também a ser apurado de igual forma”. O artigo 1.031, do CC/02, também reforça que prevalece o previsto no contrato social em termos de critério de apuração de haveres, sendo que, somente caso este seja omisso, haveria aplicação da “situação patrimonial da sociedade, à data da resolução, verificada em balanço especialmente levantado”. Deve-se pontuar, no entanto, a possibilidade de discussão judicial mesmo quando exista previsão expressa da forma e momento dos haveres [14], como no caso de inobservância dos limites legais e dos princípios gerais do direito [15].

 

A importância da inclusão de cláusula no contrato social regulando a forma de apuração dos haveres em caso de dissolução parcial da sociedade resta, assim, evidenciada, a fim de mitigar efeitos não desejados pelos sócios, apesar da possibilidade de questionamentos sobre os critérios previstos contratualmente, assim como sobre a aplicabilidade de tal disposição contratual ao cônjuge ou companheiro do sócio, especialmente considerando que ele não terá participado da regulação, de modo que os efeitos da pactuação serão projetados à sua relação de “sócio do sócio”.

 

Nesse cenário, diferentes medidas podem ser implementadas com o objetivo de mitigar efeitos não desejados sobre a sociedade em caso de rompimento do relacionamento conjugal de um sócio. No âmbito da autonomia privada, os sócios podem prever a livre cessão de quotas ou sua restrição, da mesma forma que podem estipular quando e como se dará a apuração de haveres, respeitados os limites legais e princípios gerais do direito.

 

Assim, caso a sociedade limitada tenha natureza intuitu personae, na qual as pessoas dos sócios importam para a consecução dos objetivos sociais, a existência de uma cláusula expressa impedindo o ingresso de cônjuge reforça a característica pessoal da sociedade, dificultando qualquer pretensão de ingresso de ex-cônjuge na sociedade (embora o risco de discussão, ainda que diminuto, sempre exista) e reforçando a garantia de resguardo ao ex-cônjuge ou ex-companheiro do sócio a condição de “sócio do sócio”, concorrendo nas distribuições periódicas de lucros até que ocorra a apuração de seus haveres (em caso de casamento ou união estável sob regime comunheiro).

 

Além disso, também a previsão da apuração de haveres apresenta-se como uma forma de mitigar efeitos não desejados, como a forma e momento da apuração de haveres no caso de um ex-cônjuge ou companheiro pleitear a meação das quotas sociais, até mesmo considerando que, via de regra, aplica-se o que está previsto no contrato social, conforme se depreende dos artigos 1.031 do CC/02 e 606 do CPC/15.

 

Fonte: Conjur

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