O problema
O art. 1.028 do Código Civil prescreve que, nas sociedades contratuais, ocorrendo o falecimento de sócio, as suas quotas de participação no capital serão liquidadas, para pagamento aos herdeiros, salvo: (i) se o contrato dispuser diferentemente; (ii) se os sócios remanescentes optarem pela dissolução da sociedade; ou (iii) se, por acordo com os herdeiros, regular-se a substituição do sócio falecido.1 A primeira ressalva à regra geral, que prevê a liquidação e pagamento da quota do sócio falecido, confere ao contrato social a prerrogativa de regular o modo pelo qual deverá ser promovida a sucessão do sócio falecido, em especial as condições para o ingresso dos herdeiros na sociedade.
O problema ora trazido à discussão decorre da ausência, verificada na imensa maioria dos instrumentos de constituição de sociedades limitadas, de natureza contratual, de cláusula específica regulando a sucessão do sócio falecido, seja este simples quotista, controlador ou administrador. O modelo básico de contrato de sociedade limitada elaborado pelo órgão central do registro de empresas,2 sequer trata dessa hipótese, mesmo porque a sucessão do sócio falecido não está no rol das cláusulas obrigatórias do art. 997 do Código Civil. Também é do conhecimento comum, na prática empresarial, que os contratos sociais são elaborados por escritórios de contabilidade, cuja preocupação principal reside mais nos aspectos formais do instrumento, para assim assegurar sua registrabilidade na Junta Comercial, não obstante a exigência legal de que os contratos de constituição de pessoas jurídicas devem ser “visados” por advogado, sob pena de nulidade. Portanto, em grande parte dos casos, a cláusula sucessória vem sendo esquecida ou negligenciada.
A partir da análise, por amostragem, de diversos casos e julgados envolvendo conflitos entre sócios remanescentes e herdeiros do sócio falecido, em especial originários do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Justiça do Estados de São Paulo, localizamos a origem desse problema, exatamente, na ausência de previsão expressa, nos contratos sociais, da cláusula sucessória. Em especial no caso de falecimento do sócio majoritário ou administrador, tal situação geralmente ocasiona um vácuo de representação na empresa, e a regra geral do caput do art. 1.028 do Código Civil não é capaz de solucionar ou encaminhar a questão sucessória.
Conteúdo da cláusula sucessória nos contratos de sociedade
A cláusula sucessória tem por objeto a regulação do modo como se procederá, no âmbito da sociedade, a destinação das quotas pertencentes ao sócio falecido. Como todos os sócios são, naturalmente, mortais, essa cláusula deveria ser de previsão obrigatória nas disposições contratuais societárias, principalmente nas sociedades constituídas para duração por tempo indeterminado. O falecimento do sócio, sem embargo, não ocasiona, apenas, um problema de ordem patrimonial, relacionado ao direito dos herdeiros à percepção dos lucros distribuídos após a abertura da sucessão,4 e à apuração dos haveres pertencentes ao espólio. Os direitos derivados das quotas da sociedade são mais amplos, porque compreendem direitos políticos e pessoais, em especial quando interferem nas relações de controle e administração.
A disposição da cláusula sucessória, destinada a manter o controle da sociedade no âmbito do tronco familiar do sócio falecido, pode prever que seus herdeiros e sucessores devem ser admitidos na sociedade, independentemente do consentimento dos sócios remanescentes ou da oposição destes.6 É admissível, inclusive, estipular no contrato social a indicação de determinado filho como único sucessor do sócio falecido, adotando o seguinte enunciado: “No caso de falecimento do sócio Carlos, o seu filho Luiz ingressará na sociedade recebendo na partilha a totalidade das suas quotas”. Essa designação nominativa não viola, assim entendemos, o preceito contido no art. 426 do Código Civil, o conhecido “pacto corvina”, já que a cláusula sucessória, referida no inciso I do art. 1.208 do Código Civil, admite a transmissão de quotas a herdeiro, para ingresso na sociedade, no caso de falecimento de sócio. Com efeito, a norma específica que regula o contrato de sociedade afasta a norma geral aplicável aos contratos em geral.
Vamos considerar, em outro exemplo, o caso seguinte: Paulo é casado com Daniela, pelo regime da comunhão parcial de bens, sendo ele quotista, que tem, além dele, como sócios minoritários, Aldo e Vera. Paulo é sócio majoritário e também administrador da empresa, exercendo os poderes de administração em conjunto com Aldo. O desejo principal de Paulo é que, com seu falecimento, sua esposa, Daniela, receba a totalidade das suas quotas e passe a exercer e usufruir a condição de controladora da empresa. Todavia, a vontade consecutiva manifestada e formalizada por Paulo, no contrato social, é a de que o sócio minoritário Aldo, que sempre foi o maior parceiro e braço direito na condução da empresa, dotado de grande expertise e capacidade gerencial, fique como único administrador e representante da sociedade. Essa disposição de vontade, com tal conteúdo e designação nominativa de beneficiários pode, sim, constar de cláusula sucessória no contrato social, do modo seguinte: “Quando do falecimento do sócio Paulo, este determina que suas quotas sejam transferidas para sua esposa Daniela, que passará a deter o controle da empresa, como quotista, a qual deverá exercer seu poder de controle, para votar e garantir que o sócio Aldo seja o único titular da administração da sociedade”. Segundo a doutrina do saudoso Zeno Veloso, nada impede e nada proíbe que cônjuges celebrem quaisquer contratos entre si, inclusive de sociedade, desde que não tenham como objetivo fraudar a lei.
Outra questão controversa, não suficientemente pacificada pela jurisprudência, diz respeito à individualização e separação das quotas, quando marido e mulher, casados pelo regime da comunhão de bens ou da comunhão parcial, sejam sócios, cada qual sendo titular de determinada quantidade de quotas. No caso de falecimento do marido, por exemplo, em princípio, todas as quotas pertencentes ao casal passariam a integrar o monte-mor do espólio. Neste caso, as quotas da viúva seriam também partilhadas com os filhos, diluindo a sua participação na sociedade. A cláusula sucessória, definida no contrato social, poderia resolver a questão, ao assim dispor: “Sendo os sócios Vitor e Clarissa casados entre si pelo regime da comunhão parcial de bens, e titulares de quotas individuais, no caso de falecimento de qualquer um deles, as quotas pertencentes ao cônjuge sobrevivente não deverão ser incluídas no monte partilhável, no qual somente serão apuradas as quotas individuais do sócio falecido”. Apesar de ser questão passível de dúvida, ela pode ser objetivamente solucionada por cláusula sucessória, existindo precedente nesse sentido.
A cláusula sucessória também pode ser utilizada no sentido de maximizar o valor das quotas, mediante a oferta para venda pelo maior valor oferecido, acima, inclusive, do valor patrimonial real, gerando um ágio em benefício dos herdeiros. Essa cláusula poderia adotar a seguinte redação: “No caso de falecimento do sócio Fernando, os sócios remanescentes Cláudio e Alice terão a preferência para a aquisição das suas quotas, pelo maior lance, desde que ofereçam valor acima da avaliação patrimonial real calculada, nos termos do art. 1.031 do Código Civil, com base em balanço especial, para crédito do seu espólio e pagamento aos herdeiros”.
Poderá também ser estipulada cláusula sucessória que admita o ingresso do espólio do sócio falecido na sociedade, antes de ultimada a partilha. Durante o período em que não seja concluído o inventário do sócio falecido, o que pode demandar anos se não houver acordo entre os herdeiros, entre si e diante dos demais sócios, pode o contrato social prever a participação do espólio como sócio, como assim autoriza a jurisprudência do STJ.
Cláusula sucessória nos acordos entre sócios
Segundo a opinião de Fábio Ulhoa Coelho, nas sociedades por quotas que adotem a regência supletiva pela lei das sociedades anônimas, as quais ele denomina sociedades de vínculo estável, o falecimento do sócio não produz o efeito imediato da regra geral do art. 1.028 do Código Civil, norma essa de regulação das sociedades simples. Desse modo, por força da aplicação supletiva da Lei das S.A., “os sucessores passam a titularizar a quota social e ingressam na sociedade”.11 Como consequência lógica dessa situação jurídica, demonstra-se cabível que, na sociedade limitada, seus sócios possam também estabelecer cláusulas sucessórias através de acordo de acionistas,12 isto é, entre sócios quotistas.
No acordo de sócios, estes podem estabelecer cláusulas sucessórias tendo por objetivo regular critérios de substituição do sócio falecido e a transferência dos poderes de controle. O acordo de sócios, enquanto vigente, produzirá todos os efeitos para tornar efetiva a vontade do sócio quanto ao modo e critérios para a sua sucessão, em especial para a designação dos sócios que devem assumir o controle da sociedade. O Código de Processo Civil de 2015, confirmando a tendência de jurisprudência em reconhecer a identidade de interesses e de vínculo pessoal entre os sócios de sociedade limitada e os acionistas de sociedade anônima fechada, passou a considerar a possibilidade de tratamento igualitário desses dois tipos societários em processos de dissolução parcial de sociedade.13 Com efeito, no caso das sociedades por ações, não existe e não se aplica a hipótese de dissolução parcial.14 Falecendo o acionista, seus herdeiros passam a ser os titulares das ações, sem qualquer reserva ou condição. Aplica-se, nesse caso, a mesma lógica dos direitos de crédito relativos a depósitos e investimentos em contas bancárias declarados no processo de inventário.
Desse modo, as cláusulas sucessórias tanto poderão constar do contrato social da sociedade, como também de acordo de sócios ou acionistas, regulando as hipóteses em que deverá se proceder à dissolução parcial da sociedade, com a apuração dos haveres do sócio falecido, ou a sua substituição pelos herdeiros ou pelos sócios remanescentes. A deliberação dos sócios quanto ao modo de transmissão dos direitos sucessórios não implica em disposição sobre a herança de pessoa viva, submetida à restrição do art. 426 do Código Civil, que somente se verifica nos casos de sucessão civil, situação distinta das circunstâncias especiais determinantes das relações societárias no campo do direito empresarial ou mercantil.
Conclusões
Não existe, na legislação civilista ou societária, nenhuma norma ou disposição limitativa do conteúdo da cláusula sucessória. Mesmo o testamento, como instrumento de disposição de vontade com eficácia diferida, apto para produzir efeitos a partir da abertura da sucessão, inclusive podendo conter disposições não patrimoniais,15 não representa ele, o testamento, o único instrumento possível para a transmissão de direitos societários. O exercício e a transmissão de direitos, em particular dos direitos políticos, derivados do vínculo societário, como a definição do poder de controle, não devem ser restringidas em razão de conceitos e institutos de direito civil.
Por outro lado, o testamento, como instrumento de planejamento sucessório, é unilateral e revogável a qualquer tempo. Já as cláusulas sucessórias constantes do contrato social ou de acordo de sócios, uma vez firmadas e celebradas, representam uma vontade plúrima, somente modificável pelo consenso das partes.
Na ausência da cláusula sucessória, a regra geral aplicável nas sociedades contratuais consiste na apuração dos haveres do sócio falecido e no pagamento do valor das quotas do capital aos herdeiros. O procedimento de apuração de haveres nas sociedades contratuais e companhias fechadas dependerá, pois, do modo como assim estabelecer o contrato ou estatuto, como ensina Hernani Estrela.16
Deve o contrato, em nome da própria preservação da empresa e da harmonia nas relações entre os sócios, definir o modelo de avaliação do patrimônio da empresa, a possibilidade de ingresso dos herdeiros como sócios, o prazo e condições de pagamento dos haveres, questões mais relevantes no âmbito desse processo sucessório. Cabe ressaltar que a norma geral do art. 1.028 do Código Civil é regra aplicável à sociedade simples, não existindo norma específica regulando a hipótese de falecimento do sócio na sociedade limitada. Caso o contrato social da sociedade limitada adote a regulação supletiva pela lei das sociedades anônimas (CC/2002, art. 1.053, parágrafo único), o art. 1.028 deixa de ser aplicável, competindo, portanto, apenas ao contrato social, regular a matéria de sucessão do sócio.
Fonte: Migalhas
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