Ao contrair o âmbito da tutela da patente à sua literalidade, o entendimento do STJ acabou por minimizar os impactos advindos da ocorrência do abuso na liberdade de empreender

 

Em uma lúdica apreciação analógica, é possível comparar o documento de uma patente concedida à escritura de um bem-de-raiz averbado junto ao Registro Geral de Imóveis. Assim, entre aquilo que é digno de receber destaque pela aproximação das características intrínsecas, (a) o que se concebe na patente como relatório descritivo narrando o estado da arte, também é visto no documento do RGI como imóveis confinantes ou lindeiros; (b) os desenhos e exemplos do privilégio de invenção, por sua vez, podem ser depurados na escritura como a descrição do imóvel; e (c) as reivindicações1 do direito de exclusividade, aliás, são equiparáveis à metragem exposta quanto a extensão imobiliária.

 

Com relação às características extrínsecas ao iter imaterial, mas peculiares ao direito de propriedade que recai sobre as últimas, é útil rememorar que: (d) ambas as expressões de exclusividade são suscetíveis de licença, cessão e até da usucapião2; (e) a propriedade imaterial e a material são pertinentes à utilização como direito real de garantia3; e (f) as titularidades não são imunes à denominada “intervenção do Estado na propriedade privada”4, podendo ser objeto de políticas públicas a exemplo da requisição/empréstimo compulsório, licença obrigatória, desapropriação etc.

 

As maiores similitudes entre o sistema das propriedades mobiliárias imateriais e das propriedades imobiliárias, no entanto, cessam por aí. Fato é que enquanto (g) a exclusividade tende à perpetuidade5 nos imóveis, a mesma é temporária6 na patente; (h) o conteúdo do bem imóvel tende à estabilidade, na patente é possível que o campo de tutela oscile, tal como em um movimento sistólico/diastólico. Ou seja, é possível a invalidação parcial do ato de concessão das reivindicações (denotando o fenômeno da sanatória); e (i) a cessação de uso do imóvel não traduz a imediata perda de sua titularidade, enquanto na patente – a priori – a caducidade impõe sanções pelo desuso7 do bem, independentemente da conduta de terceiros.

 

Vistas algumas das similitudes e disparidades entre os tipos proprietários da coisa imobiliária e do bem imaterial utilitário, a imagem de um transeunte ingressando em domicílio de outrem é bastante alusiva ao que se concebe como contrafação de patentes. Afora as historietas infanto-juvenis da qual a lenda de Cachinhos Dourados vem a calhar, raros são os proprietários que acham divertidas as eventuais visitas de penetras. Por isso mesmo, muito além da existência de uma rede de proteção fincada nas tutelas possessórias, petitórias e compensatórias, também há a incidência do direito penal (art. 183 da LPI) que serve à dissuasão dos aventureiros ou invasores de plantão.

 

Quando se mira o tipo de invenção protegida por uma patente, tal como ocorre no mundo do tangível, há peculiaridades jurídicas que discriminam a integridade de uma criação que mire um produto, perante aquelas que resultam em um processo. Pela improbabilidade estatística (de um proprietário-vítima de contrafação de seu meio inventivo) em demonstrar que o violador estaria reproduzindo seu processo, a legislação de regência facilitou o ônus probatório8 deslocando-o para o acusado. Sem que isso signifique, tampouco, um retorno ao período da inquisição espanhola, em geral, os Órgãos Julgadores se valem dos auxiliares do Juízo (peritos) para analisarem os fatos controvertidos. Logo, apenas diante do resultado do laudo que impute dubiedade nas teses da acusação e da defesa, é que a inversão da carga probatória vem a ser uma forte aliada do proprietário de patente de processo.

 

Situação díspar, no entanto, ocorre quanto às patentes de produtos. Quanto ao resultado da invenção desta sorte, cabe ao exclusivista – e só a ele – convencer o Juízo de que o reputado infrator assim o é. A depender do ramo tecnológico coberto pela patente, a aquisição do produto do Réu, a submissão de tal produto a análises laboratoriais por profissionais de alto gabarito, o escrutínio de professores doutores, a conduta anterior do demandado, tudo isso é considerado na produção de prova. Nada disso, entretanto, significa a ausência de complexidade ou minimização do tempo necessário até que a vítima possa satisfazer os parâmetros legais para merecer a proteção que a Constituição (art. 5º, XXIX) lhe promete. Assim, é exatamente entre a segurança e a Justiça da resposta Judiciária que as tutelas de urgência e evidência se tornam imprescindíveis ao correto deslinde do conflito de interesses.

 

Ademais, tal como sói ocorrer no ambiente dos gatunos de residências, não é comum que o contrafator de patentes faça grandes alardes para chamar a atenção do proprietário. Não se conhece de tamanha transparência do não-proprietário-violador que bradaria, em todas as esquinas, estar a vilipendiar exclusividade alheia – facilitando o acesso à tutela inibitória ou de cessação do ilícito9. Por isso, muitas vezes há alguma diacronia entre (1) a exclusividade estar posta, (2) o violador iniciar os atos lesivos, (3) o titular perceber os danos emergentes e lucros cessantes perpetrados, (4) o titular reunir a prova necessária à propositura da demanda e, por fim, (5) o proprietário receber a tutela que o Direito lhe prometeu. Quanto maior for a distância cronológica entre os itens (4) e (5), menor tende a ser valorizado o sistema de patentes.

 

Não obstante, tal como a fantasiosa hipótese do ladrão-honesto10 que admoesta o proprietário do início de sua atividade delituosa, o mesmo ocorre com o escopo do que é contrafeito. Se no mundo dos imóveis é possível cogitar que a invasão ocorra sem que o meliante encoste no solo alheio (vide um furto ocorrido por um balonista que plaina sobre o terreno), algo símile pode ocorrer com a patente. Se o conteúdo das reivindicações fosse enxergado tal como a moldura hermenêutica de que tratava Hans Kelsen11, a contrafação por equivalência12 seria o ato violador, fora das molduras, mas dentro de seu eixo gravitacional.

 

À sombra da invenção, se o imputado contrafator der destinação tecnológica endógena à mesma solução técnica com variantes13 que não (i) descaracterizem o contributo-mínimo do titular, e/ou (ii) coincidam com o domínio público; então, o ato abusivo do direito de empreender (art. 187 do CC/2002) se fará presente pela equivalência. Novamente, afora a polêmica sobre o cabimento da proteção contra os atos de contrafação por equivalência14 nos modelos de utilidade, quando se trata de patente de invenção de produtos (resultados) ou processos (meios) não haverá diferença qualitativa de tutela.

 

Por tal razão, mutatis mutandi, os subscritores deste texto tiveram alguma dificuldade de compreender a ratio do julgamento em recente remédio processual voluntário no Tribunal da Cidadania. Em síntese, pelas informações disponíveis na ementa15, as instâncias instrutórias acabaram por acolher o resultado do laudo pericial que concluíra pela utilização de meios equivalentes pelo acusado de contrafação de uma patente de processo16. Com isso, a Ré/Recorrente fora condenada ao pagamento compensatório pela violação da exclusividade quanto ao sombreamento de sua moldura protetiva (reivindicações). O STJ, entretanto, dirimiu o feito julgando pela reversão da decisão do TJPR. Contudo, ao sentir dos autores, há certo desencontro entre o decisum e a moldura hermenêutica do art. 186 da LPI, além das demais abordagens legais e judiciais análogas nos sistemas europeu17 e estadunidense18.

 

Dessa forma, ao contrair o âmbito da tutela da patente à sua literalidade19, o entendimento do STJ acabou por minimizar os impactos advindos da ocorrência do abuso na liberdade de empreender. Volvendo aos exemplos deste texto, nem todo contrafator é dado (i) aos avisos prévios em favor do exclusivista, (ii) a pisar no solo alheio, preferindo os furtos com voos rasantes, ou (iii) às violações ostensivas. De outro lado, tampouco, (iv) os proprietários de patentes serão benévolos como os Três Ursos que sofreram pelos desmandos de Cachinhos Dourados.

 

Por isso, para evitar que uma decisão (de um feito específico e com todas as suas peculiaridades, que não são objeto deste artigo) seja lida como espécie de precedente e, com isso, vire amparo teórico mais abrangente; as lições do gênio da USP são mais atuais do que nunca para a compreensão das engenharias dos contrafatores: “Solerte é a fraude. Mais, ainda, ativa e engenhosa, tanto quanto audazes os que a praticam. Acautelam-se os imitadores (…) introduzindo em suas obras modificações de tal natureza e com tanto jeito e arte, que se assegurem de sua impunidade”20.

 

Fonte: Migalhas

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