A afetividade alçou o nível de direito fundamental, por ser intrínseca ao princípio da dignidade pessoa humana, não restando dúvidas, portanto, que constitui uma importante fonte no Direito Contemporâneo
Embora ainda recebida como novidade para uma grande parcela da população, a multiparentalidade já é uma realidade presente há muito tempo na cultura brasileira. Isso porque, ao acompanhar o progresso e desenvolvimento da sociedade, o conceito de família vem se adequando as formas, paulatinamente, aos casos concretos e conforme as necessidades presentes. Nessa seara, a identificação de um reconhecimento jurídico válido para que um indivíduo possa ser registrado conforme o vínculo em que é inserido – sendo ele composto por um pai e uma mãe, dois pais ou duas mães – galgou voos maiores, inclusive, a partir do reconhecimento da socieoafetividade como preceito fundamental, que percorreu um grande caminho até ser moldado nos ditames de como conhecemos atualmente.
Esse entendimento de pluralidade familiar já é um conceito abarcado pela própria Constituição Federal de 1988. César Fiuza tratou em 2014 que a carta magna se atentou para um fato importante: não existe apenas um modelo de família, como queriam crer o Código Civil de 1916 e a Igreja Católica. A ideia de família plural, que foi sempre uma realidade, passou a integrar a pauta jurídica constitucional e de todo o sistema. (FIUZA, 2014, p. 1.156)1.
A filiação socioafetiva, neste sentido, foi um importante passo para a garantia da concretização da multiparentalidade. A socioafetividade é, o afeto que consegue construir fortes laços familiares. Venosa nos ensina que “o afeto, com ou sem vínculos biológicos, deve ser sempre o prisma mais amplo da família, longe da velha asfixia do sistema patriarcal do passado, sempre em prol da dignidade humana”. (VENOSA, 2017, p. 08).2
De modo a elucidar que o assunto é há muito tratado pela justiça brasileira, trazemos à tela um julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro datado de 2007, demonstrando que os magistrados já galgavam à concepção do entendimento de que a afetividade é fator preponderante na concepção familiar. Vejamos:
ALIMENTOS DEVIDOS A FILHO MAIOR. POSSIBILIDADE JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE PRESUNÇÃO DE NECESSIDADE QUE, ASSIM, DEVE SER COMPROVADA, JUNTAMENTE COM A POSSIBILIDADE DOS PAIS. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL QUE PERMITE AO FILHO, MESMO MAIOR E CAPAZ, BUSCAR PENSIONAMENTO ALIMENTAR DE SEUS PAIS COM FUNDAMENTO NO ART. 1. 695 DO CÓDIGO CIVIL, 229 E 1º, III DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA POSSIBILIDADE JURÍDICA DE CARACTERIZAR OBRIGAÇÃO ALIMENTAR. O INDEFERIMENTO DA INICIAL POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO CARACTERIZA VEDAÇÃO DE ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO O QUE NÃO É ADMITIDO PELA CONSTITUÇÃO FEDERAL. Os princípios da afetividade e da solidariedade encontram respaldo constitucional e ético e devem permear a conduta e as decisões da magistratura moderna e atenta à realidade do mundo atual. (TJRJ; AC 2006.001.51839. Décima Segunda Câmara nosso).
O Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da decisão sobre o Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 692186 interposto contra decisão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), e o reconhecimento da repercussão geral 622, que discutia a prevalência, ou não, da paternidade socioafetiva sobre a biológica, foram indispensáveis para que os julgados encontrassem respaldo na jurisprudência e na doutrina, assim como também acolhidos demandas da sociedade sobre o tema.
Com o tema cada vez mais em tela, os tribunais passaram a entender que o parentesco pode ser natural ou civil, conforme art. 1593 do Código Civil, considerando-se “mães” e “pais” aqueles que cuidam, garantem condições dignas, educam e dão afeto aos seus filhos e não somente aqueles que forneceram material genético. Este entendimento transforma a concepção de família a partir da compreensão dos papéis sociais e culturais que englobam as figuras parentais.
Inserido nesse contexto, a multiparentalidade traz consigo uma gama de possibilidades, visto que é o reconhecimento da pluralidade de vínculos parentais; possibilitando-se que se tenha mais de uma pessoa ocupando a mesma função paterna ou materna. Temos então que o instituto é, em sua concepção, a real possibilidade de coexistência entre duas parentalidades. Pedro Welter3 elucidou sobre o tema, trazendo que:
“Não reconhecer as paternidades genética e socioafetiva, ao mesmo tempo, com a concessão de todos os efeitos jurídicos, é negar a existência tridimensional do ser humano, que é reflexo da condição e da dignidade humana, na medida em que a filiação socioafetiva é tão irrevogável quanto a biológica, pelo que se deve manter incólumes às duas paternidades, com o acréscimo de todos os direitos, já que ambas fazem parte da trajetória da vida humana”.
A juíza de Direito Dra. Silvana da Silva Chaves, titular da 6ª. Vara de Família de Brasília explica que a partir do Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2017, (posteriormente alterado pelo Provimento 83/19) as regras foram fixadas “para o reconhecimento da filiação socioafetiva nos cartórios civis, sem a necessidade de ações judiciais, estabelecendo que: o reconhecimento deve ser voluntário, se o filho for maior de 12 anos, ele deverá consentir com o reconhecimento e o pai e a mãe registrais deverão manifestar concordância”. Neste sentido, os filhos socioafetivos também terão direitos como pensão, herança, guarda, direitos e garantias previstas em lei sem poder haver distinção entre os filhos, conforme elencado no art. 227, §6º, da Constituição Federal.4
Impossível tratar sobre o tema sem fazer honrosa menção aos trabalhos dos oficiais de registro civis, que exercem indispensável auxilio ao Estado. O registro civil de pessoas naturais, estabelece-se como guardião de óbitos e de publicidade, estabelecendo-se como meio eficaz na elaboração de diretrizes do Estado para lidar com novas orientações, além de contribuir como procedimento de construção e incorporação de mais direitos aos cidadãos brasileiros. Desse modo, a facilitação de se inserir a socioafetividade – inclusive nos casos de multiparentalidade, pela via extrajudicial, caminha ao lado da observação de princípios constitucionais, tal como o da dignidade da pessoa humana, e o respeito à vida e história de cada indivíduo.
Sem querer nos alongar demais no tema, outro ponto importante que permeia sobre o assunto são as diferenças entre a adoção e multiparentalidade que devem ficar nítidas. Enquanto na adoção a filiação anterior é apagada dos registros civis do adotado e há a constituição de novos vínculos familiares, na multiparentalidade há coexistência de vínculos paternos/maternos exercidos por mais de uma pessoa, conservando as relações familiares já existentes. Com isso, trazemos que o direito de família, disposto na norma brasileira, aceita uma cadeia de vínculos como satisfatórios para se estabelecer a filiação. Os elos biológicos, presuntivos, afetivos, adotivos ou aqueles que provém de reprodução assistida caminham lado a lado no sistema jurídico, todos sujeitos a legitimar uma relação de parentesco.
Como resultado, com as mudanças de paradigmas, a afetividade alçou o nível de direito fundamental, por ser intrínseca ao princípio da dignidade pessoa humana, não restando dúvidas, portanto, que constitui uma importante fonte no Direito Contemporâneo, estabelecendo mudanças essenciais na forma em que olhamos e lidamos com as constituições familiares. A multiparentalidade é garantidora de princípios basilares, como o da dignidade da pessoa humana e afetividade, assegurando outras e novas concepções de familiares, efetivando direitos consagrados constitucionalmente, representando um avanço no campo do direito civil, bem como na sociedade como um todo.
Fonte: Migalhas
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