Falar sobre morte é um tabu, e não é de agora. Mesmo em meio a uma pandemia que já sacrificou quase 670 mil brasileiros, muita gente se recusa a enfrentar o tema – uma contradição, visto que é a “única certeza da vida”, como dizem por aí. Mas essa é uma conversa necessária. Comunicar parentes e amigos sobre vontades, limite para tratamentos médicos, intenção de doar órgãos e até o destino de pertences pessoais facilita a vida de quem fica e tira um peso enorme das costas daqueles em quem mais confiamos.

 

Daniella Brites Almeida é médica intensivista e paliativista em um hospital oncológico em Belo Horizonte. De acordo com ela, é muito comum pacientes chegarem ao CTI com doenças que ameaçaram suas vidas, em algum grau, ao longo de anos, mas nunca tiveram a oportunidade de falar com a família ou amigos sobre desejos e decisões práticas que envolvem o período antes e após a morte.

 

“Ao silenciar sobre o tema, acabamos por delegar a outros decisões importantes que são sobre nós. Costumo dizer que a doença rouba muito do paciente. E quando deixo de falar (sobre o assunto), ela rouba muito mais, pois não é possível ficar claro, por exemplo, quais são meus valores, o que eu gostaria que fosse feito com minhas coisas ao final da vida. Silenciar traz mais sofrimento e deixa ‘quem fica’ sem saber como resolver essas questões”.

 

O desprendimento de Daniella vem de muito antes dela se tornar médica e lidar diariamente com a morte. A inspiração, conta, está na mãe, a aposentada Suze Brites de Almeida, de 67 anos.

 

Suze, por sua vez, diz que aprendeu desde muito pequena, com a avó paterna, que a morte é a única certeza que temos. “Acredito que por ser católica e ter uma caminhada espiritual desde criança, consegui entender logo que nada é eterno. Assim como converso com minhas filhas sobre a morte, minha avó conversava comigo”.

 

A compreensão e a resignação de Suze são tamanhas que ela já “organizou”, digamos, a própria partida. Deixou bem claro com que roupa quer ser cremada e até mesmo a música que deve ser tocada no velório.

 

“Há 18 anos sou ministra da eucaristia no Santuário São José e a roupa que gostaria de usar na cremação é o traje litúrgico da paróquia. Já pedi também para não me deixarem ‘ir’ sem batom. Nunca liguei para maquiagem, mas do batom faço questão”, brinca.

 

Suze explica que não gostaria de ser entubada nem de ficar muito tempo na UTI. Também já passou as senhas e orientou as filhas quanto ao seguro de banco e onde mantém as reservas financeiras, bem como o destino que deve ser dado aos seus recursos.

 

As atitudes de Suze não têm nada de mórbidas nem refletem solidão, desamparo ou falta de esperança. Ao contrário, demonstram serenidade e imenso amor à vida – dela e de quem está ao redor. “Em minhas orações falo com Deus e digo a Ele que não tenho a mínima pressa de ir embora, mas estou deixando tudo organizado e estou preparada, pois em um momento de tanta dor não quero que minhas filhas e marido se preocupem com questões burocráticas”, conta.

 

Menos espaço

 

Historiador e mestre em Sociologia, Cláudio Monteiro Duarte explica que a relação dos indivíduos com a morte passou por significativas transformações ao longo do tempo, e que discutir a finitude da vida é uma prática que vem sendo deixada de lado desde o século XVI.

 

Segundo ele, com o Renascimento, a sociedade ocidental passou a valorizar a vida em detrimento da morte, padrão que se tornou mais exacerbado com o Iluminismo. “Foi a partir da ‘Era das Luzes’ que a religião cede lugar ao cientificismo, sendo definitivamente afastada da população. Sempre foi papel da religião dar conforto àqueles que acreditavam que a morte era a continuação da vida, e que, portanto, deveria ser celebrada”.

 

Na concepção do historiador, o progresso, representado pela Revolução Industrial, acabou por separar vida e morte nas civilizações ocidentais. Para ele, o início do século XIX mostrou-se um período marcado pela disseminação de um discurso médico higienista, que engendrou inúmeras alterações na relação entre vivos e mortos.

 

“Se antes a morte era festejada como um ritual de passagem e os corpos enterrados nas próprias igrejas, a ciência dos médicos higienistas modificou a forma de encarar a morte e até mesmo os sepultamentos. Os cemitérios passaram a ser construídos cada vez mais longe das áreas urbanas, afetando definitivamente vivos e mortos”.

 

Testamento e Diretivas Antecipadas de Vontade indicam à família qual caminho seguir

 

Por causa da pandemia, o número de testamentos registrados em cartório aumentou 41,7% no país no primeiro semestre de 2021. Foram 17.538 documentos lavrados de janeiro a junho, contra 12.374 no mesmo período do ano anterior.

 

Daniella Velloso Pereira é especialista em Direito de Família e Sucessões, ramo da advocacia que trata da herança. Na avaliação da profissional, as pessoas encaram a morte de uma maneira pouco prática. Têm medo e querem evitar confrontos em vida, mas quando não existe testamento estão apenas postergando o embate que será gerado entre herdeiros. “Testamentos resolvem até 80% dos conflitos familiares”, diz.

 

A advogada também chama atenção para as “Diretivas Antecipadas de Vontade”. São uma espécie de “documento” em que a pessoa esclarece que cuidados de saúde gostaria que fossem tomados – ou rejeitados – caso perca o discernimento, situação comum em doenças degenerativas, entre elas demência e Alzheimer. “É preciso tirar um peso de cima da família, que deve tomar decisões respaldadas na vontade do paciente”, defende.

 

No papel

 

As DAV permitem que os familiares saibam se a pessoa quer ter a vida prolongada quando não há mais possibilidade de cura ou se faz a opção de receber cuidados paliativos – assistência que dá dignidade e diminui o sofrimento do paciente terminal ou em estágio avançado de determinada doença. Também indicam se a pessoa deseja morrer em casa e se será doadora de órgãos, por exemplo.

 

“Como a morte é inevitável, é muito melhor a gente conseguir lidar com os aspectos práticos dela por amor às pessoas que ficam. Conversar e ainda legalizar as questões que envolvem a partida são atos de amor e de cuidado”.

 

Dedicada a cuidar de pacientes cujos quadros, na maioria das vezes, não têm cura, a médica Daniella Brites de Almeida reforça que poucas pessoas lidam com o desfecho da vida com tranquilidade, reconhecendo a morte como um processo certo e natural.

 

“Utilizamos diversos mecanismos de defesa para não pensar sobre ela, mas falar sobre o que está acontecendo é muito curativo. É importante permitir que a pessoa que está fechando um ciclo possa chorar e expressar os medos, e esse facilitar é um processo de muito amor e cuidado com quem amamos”.

 

Também é preciso acabar com a ideia de que a morte do paciente é um fracasso do profissional da saúde, diz. “Fracasso seria deixar de dar a ele uma morte digna. Morrer não é algo apartado da vida; ao contrário, faz parte do ciclo”. E conclui: “Deveríamos voltar a celebrar a morte assim como celebramos a vida. Seria muito bom para todos se conseguíssemos ressignificar este momento de perda”.

 

Fonte: Hoje em Dia

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