A lei 14.382, que promoveu a alteração na lei 6.015/73, trouxe-nos incomensurável agilidade a todo o procedimento da resolução do compromisso de compra e venda ao permitir a resolução extrajudicial de todo e qualquer compromisso de compra e venda em que os pagamentos não são adimplidos

 

A nova lei 14.382/22, que dispõe sobre o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos, previu o cancelamento extrajudicial do registro do compromisso de compra e venda, além de diversos outros dispositivos, que contribuirão de forma exponencial para desafogar o sobrecarregado Poder Judiciário. Sabemos que o alto número de processos e a falta de capacidade estrutural para que a Justiça atenda eficazmente a todas as demandas que lhe são dirigidas não representam um problema exclusivamente brasileiro, como abordado no livro “A Era dos Direitos”, de Norberto Bobbio.  A morosidade, o alto custo e a imprevisibilidade das decisões judiciais são mazelas mundiais.

 

A fim de contribuir para a solução desses entraves, tem ganhado corpo um movimento de desjudicialização, conhecido também como compartilhamento da Justiça. Trata-se de um conjunto de iniciativas tendentes a retirar da esfera do Poder Judiciário questões que não envolvam litigiosidade, transferindo ou melhor compartilhando o manejo desses temas aos serviços notariais e de registro.

 

E é exatamente nesse sentido que a lei 14.382/22 traz transformações positivas. Conforme o seu enunciado, ela moderniza e simplifica os procedimentos relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos. No presente texto, destacamos a criação do cancelamento do registro do compromisso de compra e venda extrajudicial, alterando o art. 251, da Lei de Registros Públicos, que é acrescido pelo art. 251-A.

 

Conforme podemos observar pela leitura do caput do art. 251-A, este se refere a compromisso de compra e venda e, em seguida, no seu §1º, à promessa, de forma indistinta. Conquanto, reputemos esse assunto de menor relevância para o presente trabalho, que é descortinar os benefícios da desjudicialização, mister se faz que o tema seja abordado, ainda que de forma perfunctória.

 

Senão, vejamos:

 

“Barbosa Lima distingue o contrato preliminar de promessa (que apenas gera obrigação de fazer; que, não cumprida, converte-se em perdas e danos; que não transfere a posse nem os riscos da coisa), do atual compromisso de compra e venda regulado pelo decreto-lei 58/37 e lei 649/49.

 

“A simples promessa (sem estes atributos) é “contrato preliminar próprio” e o compromisso de compra e venda (com esses atributos) é contrato preliminar impróprio. Neste, as partes não se obrigam a uma nova manifestação de vontade e sim a reiterar, a reproduzir a manifestação anterior, pois foi neste momento anterior que o consentimento foi dado de forma cabal e irreversível, motivo por que deste momento anterior devem ser considerados produzidos todos os efeitos concretos do ato.”

 

Entretanto, reitere-se, a lei aplica os termos “promessa” e “compromisso” de forma indistinta. Devemos, portanto, a fim de diferenciar se se trata de uma promessa ou de um compromisso de compra e venda, concentrarmo-nos no conteúdo do negócio jurídico que se nos apresenta, em vez da sua nomenclatura, e.g., estamos nos referindo nesse artigo ao compromisso de compra e venda (contrato preliminar impróprio). Esse é o objeto do nosso estudo.

 

Importante lembrar também que o termo correto para o desfazimento da promessa ou do compromisso de compra e venda, quando há o inadimplemento contratual, no caso do dispositivo legal, o inadimplemento por falta de pagamento, é resolução da promessa ou do compromisso de compra e venda (vide art. 475, do Código Civil) e não rescisão.

 

Portanto, a pedido do promitente vendedor, o promitente comprador será notificado, pelo oficial do registro de imóveis ou pelo oficial do registro de títulos e documentos, com o prazo de 30 (trinta) dias, para efetuar o pagamento da sua obrigação acrescida de demais despesas (§1º, do art. 251-A, da Lei de Registros Públicos).

 

E, caso não o faça, o oficial do registro de imóveis, com fundamento no inciso III, do art. 250 da lei 6.015/73, averbará (art. 284 da Lei de Registros Públicos) o cancelamento daquele registro, i.e., com base no requerimento do compromitente vendedor noticiando a resolução do compromisso de compra e venda.

 

Por seu turno, o cancelamento do registro consiste em um ato acessório e tem natureza de averbação, resultando na extinção formal de um ato, podendo, ainda, nos termos do art. 249 da já mencionada Lei de Registros Públicos, ser parcial ou total. Esclarecendo, por fim, que o registro, enquanto não cancelado, produz todos os efeitos legais ainda que, por outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido, ex vi do art. 252 da lei 6.015/73.

 

Retornando à possibilidade do cancelamento administrativo do compromisso de compra e venda, é bem verdade que, desde a edição do decreto-lei 58, de 10/12/37 (vide art. 14, do decreto-lei 58/37), e da lei 6.766, de 19/12/79, já se previa a resolução administrativa do compromisso de compra e venda para imóveis loteados (vide §3º, do art. 32, lei 6.766, de 19/12/79).

 

Em relação aos compromissos de compra e venda de imóveis não loteados não havia essa previsão legal. E a jurisprudência do nosso Superior Tribunal de Justiça vinha se posicionando no sentido de exigir a prévia resolução judicial do contrato, a fim de que, posteriormente, o compromitente vendedor ingressasse com a ação de reintegração de posse do imóvel, objeto do negócio jurídico, ainda que do contrato constasse cláusula resolutiva expressa.

 

Importante, igualmente, salientar que a possibilidade de resolução do contrato extrajudicial, constante do art. 251-A, da Lei de Registros Públicos, com o consequente cancelamento do seu registro, somente se dará pela mora do devedor por falta de pagamento, afastando, portanto, dessa forma, outras espécies de mora (art. 394, do Código Civil brasileiro).

 

Com efeito, é fundamental que conste no contrato a cláusula resolutiva expressa, que decorre diretamente da autonomia privada das partes e encontra o seu fundamento na avença contratual, não sendo necessária a intervenção judicial para que ela tenha eficácia na prática.

 

Assinale-se que o Código Civil expressamente prevê a aplicação da resolução de pleno direito no art. 474, indicando ainda no art. 397 que o simples inadimplemento da obrigação em seu termo (mora ex re) constitui o devedor em mora.

 

Destarte, existindo o descumprimento do contrato, o credor terá a prerrogativa de considerar a relação dissolvida, independentemente da interpelação judicial ou constituição formal da mora. Afinal, a mora decorrerá automaticamente da não realização da prestação no modo, tempo ou forma prescrita, e a resolução de pleno direito se opera pelos efeitos legais que foram atribuídos pelo Código Civil.

 

No entanto, em se tratando de resolução da relação contratual facultada pela cláusula resolutiva expressa de bem imóvel, ainda que conste do contrato a mencionada cláusula, para que o devedor (compromissário comprador) seja constituído em mora, será imprescindível a sua notificação (pelo oficial do registro do imóvel ou pelo oficial do registro de títulos e documentos), tanto para os imóveis loteados (art. 14, decreto-lei 58/37; art. 14, decreto 3.079/38; art. 32, lei 6.766/79) como para aqueles não loteados (art. 22, do decreto-lei 58/37; art. 1º, decreto-lei 745/69).

 

Essa notificação deverá conter o valor do crédito em aberto, o cálculo dos encargos contratuais cobrados, o prazo e local de pagamento e, principalmente, a explícita advertência de que a não purgação da mora no prazo de 30 (trinta dias) acarretará a gravíssima consequência da extinção do contrato por resolução.

 

Mencione-se, também, por oportuno, que a lei 14.382/22, que alterou o art. 251, da lei 6.015/73, trata da possibilidade da resolução extrajudicial do compromisso de compra e venda em relação aos imóveis loteados e não loteados, e entre partes paritárias (art. 421, do Código Civil brasileiro) e de relação de consumo (lei 8.078/90).

 

Questão tormentosa ainda a ser enfrentada pelos operadores do direito é saber quando o atraso no pagamento das prestações se converterá em inadimplemento absoluto, ou seja, quando não mais interessará ao credor receber aquela prestação, haja vista que para que a relação obrigacional seja resolvida deverá ser constatado o inadimplemento absoluto de obrigação essencial, e o “risco há de ser capaz de conduzir à impossibilidade ou inutilidade da prestação para o credor”.

 

Por outro lado, contemporaneamente, sabemos que o contrato deverá cumprir a sua função social, e a autonomia privada deverá estar sempre balizada pelo princípio da boa-fé objetiva e da justiça contratual. A relação contratual gera, simultaneamente, os deveres contratuais e os deveres anexos, laterais ou instrumentais (dever de proteção, de informação e de cooperação), e a violação desses deveres anexos igualmente dá ensejo à resolução do contrato (teoria da violação positiva do contrato elaborada por Hermann Staub).

 

Posto isso e tecidas essas considerações, indagamos: de que forma coadunar esses princípios supramencionados, além do princípio do adimplemento substancial (vide art. 35, da lei 6.766/79), do princípio do equilíbrio econômico do contrato e da conservação dos contratos, com a possibilidade do cancelamento do registro compromisso de compra e venda extrajudicial?

 

Indubitavelmente, são questões tormentosas a serem enfrentadas por todos os operadores do direito, mas, a princípio, penso que a redação de uma cláusula resolutiva expressa, prevendo, a partir da autonomia privada das partes, o que seria considerado adimplemento substancial, prazo de carência (para que o pedido de resolução do compromisso pudesse ser formulado perante o registro imobiliário competente, vide art. 63, da lei 4.591/64), possibilidade extra de purgação da mora, entre outros temas sensíveis, evitaria ou, ao menos, reduziria a procura pelo Poder Judiciário, a fim de se questionar a legitimidade da cláusula resolutiva expressa, sob a alegação do abuso do direito ou da não observância do princípio da boa-fé objetiva, do princípio do equilíbrio econômico do contrato ou que não ocorreu o inadimplemento absoluto.

 

Esclareça-se, ainda, que a cláusula resolutiva expressa não se confunde com a cláusula penal, que poderá ser moratória (atraso no pagamento, natureza complementar) ou compensatória (inadimplemento absoluto, caráter substitutivo). Lembrando, igualmente, que a cláusula penal poderá ser reduzida em razão da equidade (art. 413, do Código Civil, brasileiro) ou aumentada; nessa última hipótese, deverá constar do contrato essa possibilidade (art. 416, do Código Civil brasileiro).

 

Ultrapassados esses temas desafiadores, passamos, então, aos efeitos da resolução extrajudicial facultada pela cláusula resolutiva expressa. Seguramente, o efeito principal da execução da cláusula resolutiva expressa é a resolução extrajudicial da relação obrigacional. Contudo, além desse efeito principal estarão presentes os efeitos liberatório, restitutório e ressarcitório, como, por exemplo, o ressarcimento por benfeitorias necessárias ou úteis (vide art. 34, da lei 6.766/79; §§2º, 3º, do art. 96, do Código Civil brasileiro), devolução de prestações, perdas e danos, entre outros.

 

Portanto, se alguma questão tiver que ser discutida em juízo, essa discussão e análise pelo Poder Judiciário deverá ser realizada a posteriori. “A intervenção judicial será meramente fiscalizadora da legitimidade do exercício da autonomia privada na elaboração da cláusula resolutiva e do efetivo preenchimento dos pressupostos autorizadores da resolução.”

 

A intenção, dessa forma, é que o Poder Judiciário seja chamado apenas naquelas situações em que realmente sua intervenção seja necessária, atuando muito mais nas consequências do desfazimento, do que propriamente no demorado caminho até a declaração da resolução.

 

Ressalte-se, igualmente, que, após a resolução do compromisso, do cancelamento do registro e da consequente expedição da certidão do cancelamento do registro do compromisso de compra e venda, essa certidão se reputará como prova relevante ou determinante para concessão da medida liminar de reintegração de posse.

 

Sem dúvida nenhuma, a lei 14.382, que promoveu a alteração na lei 6.015/73, trouxe-nos incomensurável agilidade a todo o procedimento da resolução do compromisso de compra e venda ao permitir a resolução extrajudicial de todo e qualquer compromisso de compra e venda em que os pagamentos não são adimplidos, desde que o devedor tenha sido constituído em mora, conferindo eficácia ao movimento da desjudicialização ou do compartilhamento da Justiça, promovendo, simultaneamente, o restabelecimento da promessa ou do compromisso de compra e venda como instrumento contratual de fundamental importância ao mercado imobiliário brasileiro.

 

Fonte: Migalhas

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