Dada a inexistência, no Código Civil, de qualquer vedação a respeito, bem como pela própria dinâmica obrigacional do contrato de compra e venda, resta a conclusão de que é admissível a venda de coisa alheia

 

I – Do objeto no contrato de compra e venda

 

O contrato de compra e venda é possivelmente a figura mais tradicional dentre os tipos contratuais, por se prestar a substituir coisas por dinheiro, e dessa forma facilitar interações sociais.

 

Até em decorrência de tal importância, é o primeiro tipo contratual disciplinado no Código Civil, entre os arts. 481 e 532, iniciando o Título VI, ¨Das Várias Espécies de Contrato¨.

 

Nos termos do art. 482, a compra e venda, quando pura, considerar-se-á obrigatória e perfeita, desde que as partes acordarem no objeto e no preço, de modo que se evidenciam os elementos essenciais do contrato, ou seja, a manifestação do consenso pelas partes quanto ao objeto e o preço.

 

No entanto, uma dinâmica importante que integra as características do contrato é que ele contém, em si, uma característica obrigacional. Ou seja, a sua celebração, por si só, não opera a transferência de propriedade da coisa, mas, em realidade, a celebração cria uma obrigação, às partes, de em momento posterior (já na fase de execução ou cumprimento do contrato) efetivar a transferência da propriedade, para o vendedor, e realizar o pagamento do preço, pelo comprador. Quanto à qual seria esse momento de cumprir a prestação, irá depender, caso a caso, do avençado, no sentido de se estabelecer o cumprimento das prestações de forma imediata, diferida ou continuada. Essa dinâmica pode ser constatada a partir do art. 481 do Código Civil, quando dispõe que ¨pelo contrato de compra e venda, um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de certa coisa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro. Logo, do referido texto, destaque-se a referência à expressão “obriga-se”, que atribui a ato futuro, do cumprimento da prestação.

 

Essa dinâmica obrigacional do contrato permite tecer alguns comentários no que tange à coisa, objeto do acordo.

 

Por certo, a ideia mais tradicional envolve a celebração de contrato que tenha por objeto coisa já existente e pertencente ao vendedor. Mas nada impede que seja objeto da compra e venda coisa futura, inexistente ao tempo da celebração, mas que se espera que exista quando do momento do cumprimento. Inclusive, nesse sentido prevê o art. 483, que reconhece expressamente que o contrato pode ter por objeto coisa atual ou futura, com a ressalva de que ficará sem efeito se esta não vier a existir, exceto se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório, de risco natural.

 

Assim, podem ser objeto de contrato de compra e venda coisas de diferentes características, como bens corpóreos e incorpóreos, móveis, imóveis e semoventes, fungíveis e infungíveis.

 

E, dada essa ampla possibilidade quanto ao objeto, é possível que o contrato envolva também objeto inexistente (como visto acima), ou, ainda que existente, não pertencente ao vendedor no momento da celebração.

 

Quanto ao objeto inexistente, não oferece maiores dificuldades, seja pela expressa previsão legal, constante do art. 483, como pela própria lógica econômica, que evidencia que muitas vezes os empresários celebram a venda de um bem que irão fabricar futuramente, mas a tempo de entregar no prazo contratualmente estabelecido para o cumprimento da obrigação.

 

Ora, se existem tais possibilidades, surge também interessante discussão, quanto à viabilidade de alguém se obrigar, pela celebração de compra e venda, a transferir a propriedade de coisa alheia, não pertencente ao vendedor no momento da celebração (em relação à qual ele deverá adquirir, para em ato posterior possibilitar o cumprimento da prestação decorrente da compra e venda).

 

II -Da discussão acerca da possibilidade de compra e venda tendo por objeto coisa alheia

 

Como já ressaltado, é objeto do contrato de compra e venda uma coisa a ser entregue.

 

A princípio, até por questões de legitimação, exige-se que a coisa seja de propriedade do vendedor. O Código Civil Francês, em seu art. 1.599, considera nula a venda de coisa alheia, isto é, que pertença a terceiro. Ressalte-se, porém, que no direito francês a celebração do contrato de compra e venda produz o efeito imediato de transferir a propriedade da coisa1.

 

O Código Civil Português possui dispositivo (art. 892) semelhante asseverando que “É nula a venda de bens alheios sempre que o vendedor careça de legitimidade para a realizar; mas o vendedor não pode opor a nulidade ao comprador de boa-fé, como não pode opô-la ao vendedor de boa-fé o comprador doloso”.

 

No direito italiano, não há regra similar, havendo a previsão de que no caso de venda de coisa alheia, o vendedor é obrigado a providenciar a aquisição da coisa para transferi-la ao comprador (Codice Civile – art. 1.478).

 

O Código Civil e Comercial Argentino, em seu art. 1.132, considera expressamente válida a venda de coisa alheia, criando-se para o devedor a obrigação de entregar ou fazer entregar a coisa.

 

No Código Civil Brasileiro, não há regra sobre o tema. Diante dessa situação, surgiram algumas divergências.

 

Caio Mário entende que a venda de coisa alheia seria um contrato anulável no Brasil. Arnaldo Rizzardo, por sua vez, afirma que “Considera-se ato inexistente a venda de coisa alheia”3.

 

Por sua vez, Orlando Gomes afirma que “Parece absurda a venda de coisa alheia, pois, intuitivamente, a coisa vendida deve pertencer ao vendedor. Uma vez, porém, que, pelo contrato, o vendedor se obriga, tão só, a transferir a propriedade da coisa, nada obsta que efetue a venda de bem que ainda lhe não pertence; se consegue adquiri-lo para fazer a entrega prometida, cumprirá especificamente a obrigação; caso contrário, a venda resolve-se em perdas e danos. A venda de coisa alheia não é nula, nem anulável, mas simplesmente ineficaz”4.

 

Contudo, não se pode cogitar de nulidade ou ineficácia nesse caso, sendo perfeitamente admissível a venda de coisa alheia5. Se o vendedor não for dono da coisa no momento da execução, o que teremos será a inexecução do contrato, mas ele pode adquiri-la até o momento da execução e adimplir normalmente a obrigação assumida6.

 

III – Conclusões

 

Dada a inexistência, no Código Civil, de qualquer vedação a respeito, bem como pela própria dinâmica obrigacional do contrato de compra e venda, resta a conclusão de que é admissível a venda de coisa alheia, que não pertença ao vendedor no momento do aperfeiçoamento do contrato.

 

Tal operação, inclusive, é comum no contexto do mercado de capitais, recebendo a nomenclatura de ¨venda a descoberto¨. Ou seja, algo que poderia parecer, à primeira vista, sem sentido (vender o que não lhe pertence), carrega uma lógica econômica, muito explorada por investidores, que usam tal possibilidade negocial para tentar lucrar com disparidades de preços no período contratual (lapso de tempo entre a celebração do contrato e o momento do seu cumprimento), pela qual se vende um bem que não se possui, por um preço certo, esperando que, no período de tempo até o cumprimento da obrigação, se consiga adquirir o bem por valor inferior, buscando ganhar com a diferença.

 

Assim, em conclusão, é possível, perante a legislação brasileira, a celebração de contrato de compra e venda de coisa alheia (¨a descoberto¨), da qual o vendedor não seja proprietário, devendo, após a celebração do contrato, adquiri-la até o momento estipulado para adimplir a obrigação de venda, sob pena de, em não o fazendo, restar caracterizada a inexecução do contrato.

 

Fonte: Migalhas

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