Nos termos do art. 544 do Código Civil, as doações de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importam em adiantamento do que lhes cabe por herança. Houve relevantes alterações do dispositivo, pois o art. 1.171 do Código Civil de 1916 previa que “a doação de pais aos filhos importa em adiantamento da legítima”. Além da inclusão expressa dos demais ascendentes e descendentes, foi também acrescentado ao comando o cônjuge, que é herdeiro necessário pelo Código Civil de 2002 (art. 1.845 do CC/2002), podendo concorrer com os descendentes na herança (art. 1.829, I, do CC/2002). Penso que, por interpretação da decisão do Supremo Tribunal Federal que entendeu pela inconstitucionalidade do art. 1.790 da codificação privada, o companheiro também passou a ser herdeiro necessário (decisum publicado no Informativo n. 864 da Corte, RE 646.721/RS), o que não é o foco principal deste artigo.

 

Em complemento, o dispositivo em estudo não utiliza mais o termo “legítima”, mas “herança”. Apesar dessa modificação, parece-me que o objetivo da norma continua sendo a tutela da reserva hereditária, que é a quota que cabe aos herdeiros necessários. Assim, relativamente à doação de ascendente a descendente, os bens deverão ser colacionados no processo de inventário por aquele que os recebeu, sob pena de sonegados, ou seja, sob pena de o herdeiro perder o direito que tem sobre a coisa (arts. 1.992 a 1.996 do Código Civil). Todavia, é possível que o doador dispense essa colação, como está no art. 2.006 da Lei Geral Privada, com a seguinte redação: “a dispensa da colação pode ser outorgada pelo doador em testamento, ou no próprio título de liberalidade”. Há discussão sobre o dever de colacionar do cônjuge e do companheiro, o que me parece óbvio.

 

Sem grandes polêmicas, a doutrina pontua que poderá haver doação de um cônjuge a outro sendo o regime de separação convencional de bens, de comunhão parcial – presente patrimônio ou bem particular, de apenas um dos consortes – ou de participação final nos aquestos – novamente quanto aos bens particulares.

 

Porém, o Superior Tribunal de Justiça entende ser nula a doação entre cônjuges no regime da comunhão universal, pois todos os bens já integram o patrimônio do casal. Entre os julgados mais antigos, concluiu-se do seguinte modo: “Doação entre cônjuges. Incompatibilidade com o regime da comunhão universal de bens. A doação entre cônjuges, no regime da comunhão universal de bens, é nula, por impossibilidade jurídica do seu objeto” (STJ, AR 310/PI, Segunda Seção, Rel. Min. Dias Trindade, j. 26.05.1993, DJ 18.10.1993, p. 21828). Ou, do ano de 2020, o seguinte acórdão: “é nula a doação entre cônjuges casados sob o regime da comunhão universal de bens, na medida em que a hipotética doação resultaria no retorno do bem doado ao patrimônio comum amealhado pelo casal diante da comunicabilidade de bens no regime e do exercício comum da copropriedade e da composse” (STJ, REsp 1.7870.27/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 04.02.2020, DJe 24.04.2020).

 

Com o devido respeito, penso ser possível a doação entre os cônjuges – ou mesmo entre companheiros -, no tocante aos bens excluídos da comunhão universal (art. 1.668 do CC), caso de um bem de uso pessoal. De todo modo, esse também não é o foco principal deste texto, e pretendo retomar o assunto em outro artigo.

 

O debate que ora trago diz respeito à doação entre cônjuges no regime da separação legal ou obrigatória de bens, tratada pelo art. 1.641 do Código Civil, nas seguintes situações: a) das pessoas que contraírem casamento com inobservância das causas suspensivas para sua celebração (art. 1.523 do Código Civil, caso do divorciado que não partilhou os bens do relacionamento anterior); b) da pessoa maior de setenta anos, tendo sido a idade aumentada dos sessenta anos, por força da Lei n. 12.344/2010; e c) de todos os que dependerem de suprimento judicial para casar, como os menores.

 

Argumentava-se, sobretudo na vigência do Código Civil de 1916, que a doação entre cônjuges nesse regime implicaria fraude à lei, a gerar a sua nulidade absoluta. Na vigência da atual codificação a nulidade estaria fundamentada no seu art. 166, inc. VI. Entretanto, sempre entendi de forma contrária, por sua validade, em regra, não se podendo presumir a fraude, sobretudo pelo sistema adotado pelo Código Civil de 2002.

 

Primeiro, porque o Código Civil de 2002 passou a possibilitar a ação de modificação de regime de bens, proposta consensualmente por ambos os cônjuges, conforme o seu art. 1.639, § 2º: “é admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros”. E, consoante o Enunciado n. 262, aprovado na III Jornada de Direito Civil, “a obrigatoriedade da separação de bens nas hipóteses previstas nos incs. I e III do art. 1.641 do Código Civil não impede a alteração do regime, desde que superada a causa que o impôs”.

 

A principal situação em que se tem deferido tal modificação do regime é a superação de causa suspensiva do casamento, que se enquadra como justa causa para o pedido motivado exigido pela lei. Nesse sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça em precedente do ano de 2006: “assim, se o Tribunal Estadual analisou os requisitos autorizadores da alteração do regime de bens e concluiu pela sua viabilidade, tendo os cônjuges invocado como razões da mudança a cessação da incapacidade civil interligada à causa suspensiva da celebração do casamento a exigir a adoção do regime de separação obrigatória, além da necessária ressalva quanto a direitos de terceiros, a alteração para o regime de comunhão parcial é permitida” (STJ, REsp 821.807/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ 13.11.2006, p. 261). Esse entendimento, doutrinário e jurisprudencial, demonstra não haver rigidez no regime de separação legal, que não é tão absoluta assim; possibilitando, mesmo que indiretamente, a doação entre cônjuges em tal regime.

 

Além disso, como reforço à possibilidade de doação entre cônjuges no regime da separação legal, conclui-se, de modo majoritário, pela manutenção da Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal, pela qual nesse regime comunicam-se os bens havidos durante o casamento, pelo esforço comum dos cônjuges (STJ, EREsp 1.623.858/MG, Segunda Seção, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª Região), j. 23.05.2018, DJe 30.05.2018). Ora, se há comunicação patrimonial, mais uma vez se constata que a separação não é tão obrigatória, não havendo óbice para a doação de alguns bens. Em suma, não se pode presumir a fraude à lei nos casos em questão, como antes se sustentava.

 

Na mesma linha, concluindo pela viabilidade jurídica da doação entre cônjuges no regime da separação obrigatória de bens, colaciona-se julgado do Tribunal Paulista, relatado pelo Desembargador Caetano Lagrasta, em que se demonstrou a ausência de vício da vontade ou do consentimento no caso concreto:

 

“Anulação de doação. Ex-cônjuges. Alegação de que o regime de separação obrigatória de bens impedia o ato. Doação de imóvel que não se estende ao alegado impedimento. Ato de mera liberalidade. Valor que não dilapidou o patrimônio do doador. Inexistência de coação. Sentença de improcedência mantida. Provimento negado. Litigância de má-fé. Não configuração. Inexistência de intuito protelatório. Provimento negado” (TJSP, Apelação com Revisão 546.548.4/7, Acórdão 2548431, Oitava Câmara de Direito Privado, São Paulo, Rel. Des. Caetano Lagrasta, j. 02.04.2008, DJESP 16.04.2008).

 

Exatamente no mesmo sentido concluiu o Superior Tribunal de Justiça em 2011, em acórdão que analisou doação realizada na vigência da codificação anterior. Nos seus termos, “são válidas as doações promovidas, na constância do casamento, por cônjuges que contraíram matrimônio pelo regime da separação legal de bens, por três motivos: (I) o CC/16 não as veda, fazendo-o apenas com relação às doações antenupciais; (II) o fundamento que justifica a restrição aos atos praticados por homens maiores de sessenta anos ou mulheres maiores que cinquenta, presente à época em que promulgado o CC/16, não mais se justificam nos dias de hoje, de modo que a manutenção de tais restrições representam ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana; (III) nenhuma restrição seria imposta pela Lei às referidas doações caso o doador não tivesse se casado com a donatária, de modo que o Código Civil, sob o pretexto de proteger o patrimônio dos cônjuges, acaba fomentando a união estável em detrimento do casamento, em ofensa ao art. 226, § 3º, da Constituição Federal” (STJ, AgRg-REsp 194.325/MG, Terceira Turma, Rel. Des. Conv. Vasco Della Giustina, j. 08.02.2011, DJe 01.04.2011). Entendo que os dois primeiros fundamentos ainda subsistem atualmente, somando-se aos dois argumentos anteriores, destacados por mim.

 

Pois bem, na linha desse entendimento, na IX Jornada de Direito Civil, promovida nos últimos dias 19 e 20 de maio deste ano de 2022, a comissão de Contratos aprovou enunciado doutrinário segundo o qual, “em regra, é válida a doação celebrada entre cônjuges que vivem sob o regime da separação obrigatória de bens”. A ementa traduz o entendimento majoritário da doutrina e também a posição jurisprudencial aqui antes exposta, a demonstrar um diálogo perfeito entre ambos. Além dos argumentos aduzidos, representa legítimo exercício da autonomia privada e importante instrumento de planejamento familiar e sucessório.

 

Pontue-se que, nos debates que circundaram a proposta na comissão da IX Jornada – que teve a coordenação geral do Ministro Marco Buzzi -, cogitou-se incluir a doação entre companheiros, pela existência de posição na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de se aplicar o regime da separação obrigatória à união estável (STJ, EREsp. 1.171.820/PR, Segunda Seção, Rel. Min. Raul Araújo, DJe 21.09.2015). Porém, esse entendimento ainda gera controvérsias doutrinárias, razão pela qual se manteve apenas a doação entre cônjuges.

 

Por fim, cabe destacar que a expressão “em regra” busca afastar o argumento da presunção de fraude, antes aduzido. Advirta-se, contudo, que a liberalidade não pode apresentar qualquer vício ou defeito, seja da vontade ou social. Nesse contexto, a doação não pode implicar fraude contra credores – situação em que se pode alegar a nulidade relativa ou anulabilidade -, simulação ou fraude à lei imperativa devidamente demonstrada – sob pena de nulidade absoluta. Além disso, sob pena de ineficácia, não poderá estar presente a fraude à execução.

 

Fonte: Migalhas

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