Quais providências devem ser feitas diante dos efeitos jurídicos da separação de fato? Existem efeitos registrais à separação de fato, em conformidade com a Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos)?
Temos sustentado que o fato da separação significa fato jurídico relevante suscetível de exigir a demarcação temporal exata para os seus devidos efeitos jurídicos. É o começo do fim, quando impõe-se precisar, para a segurança jurídica, o seu termo a quo e, a tanto, justifica-se averbar em registro civil a data do começo (1).
Não há negar efeitos jurídicos à separação de fato. Um dos mais significantes para a realidade do abandono conjugal/convivencial situa-se quando a moradia pode ser objeto de uma usucapião familiar. A casa do casal tem seu escopo jurídico mais defensivo, quando é assegurado ao cônjuge ou companheiro que nela permaneça, separado de fato, na hipótese de deserção do lar pelo outro, o direito patrimonial sobre a totalidade do bem. Ou seja, ele adquire a meação do outro.
De efeito, o artigo 1.240-A do Código Civil de 2002, introduzido pela Lei 12.424/2011, trata da usucapião por abandono do lar, denominada pela doutrina como usucapião familiar. É estabelecido o prazo de dois anos para aquisição individual por usucapião da propriedade imóvel (casa do casal) antes dividida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandona o lar.
Lado outro, é de notar que, na separação de fato, o bem de família constituído pela moradia do casal vem tornar-se apenas ocupado por um dos que integravam a união desfeita, mas nem por isso perde essa qualidade. Segue-se que o outro passa a ocupar um bem imóvel diverso, nele fazendo sua moradia. Assim, no caso em espécie, ambos os imóveis constituirão bem de família, insuscetíveis de serem penhorados.
A Súmula 364, de 15/10/2008, do Superior Tribunal de Justiça, bem situa a matéria aqui tratada, com o seguinte verbete: “O conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas”. Mais uma razão para averbar-se a separação de fato em registro civil, para seus jurídicos efeitos.
Como se coloca, então, o papel jurídico da separação de fato, quando os modelos de separação judicial perderam o seu significado, diante do divórcio direto como um direito potestativo?
Reflete-se que as separações judiciais (litigiosas ou não) perderam seu sentido prático, quando o casal separado já dispõe do instituto do divórcio, sem necessidade de uma prévia passagem pelo rito da separação judicializada.
Vale, porém, a ponderação de Daniele de Lucena Zanforlin:
“a separação de fato permanece no sistema. Neste sentido, compreendemos que foi, na verdade, fortalecida a separação de fato, posto que a ela foi conferido o papel de substituir as antigas hipóteses de separação judicial, conferindo aos cônjuges, inclusive, o tão reclamado período de reflexão antes do desfazimento do vínculo conjugal”. (2)
Em outro viés, entenda-se que a separação de fato como ato de ruptura é um direito, um direito fundamental, porquanto o evento da separação decorre da quebra da affectio familiae. Assim, se o casamento ou a união estável deixou de cumprir o sentido da comunhão plena de vida que reúne o casal, “o insatisfeito passa a ter o direito fundamental de dissolvê-lo, sob pena de violação de sua liberdade e da sua própria dignidade”. (3)
Nesse conduto, a separação de fato, por si só, produz efeitos jurídicos imediatos constituindo marco temporal de uma nova realidade jurídica em face dos ex-parceiros. Tem-se a extinção do regime de bens do casal casado (ou sob união estável). Mais ainda: encerra, de plano, os deveres recíprocos do casal, ditados pelos artigos 1.566 e 1724 do Código Civil.
Precisamente, retenha-se, por decisivo, que a separação de fato altera, em ato instante, o estado de família. O estado de família é um dos atributos da personalidade da pessoa. Leciona Rosa Maria Andrade Nery que ele se apresenta “pelos vínculos familiares que unem uma pessoa à outra”, como o conjugal e o parental (4). Desfeitos, no plano dos fatos, os vínculos, modifica-se, sim, o estado.
A tanto que tal modificação de estado de família implica em um segundo dos principais efeitos jurídicos da separação de fato. O separado de fato pode constituir união estável com outrem, conforme exposto pelo artigo 1.723 § 1º do Código Civil (05)
Assim, mesmo que a concretização da ruptura da relação conjugal ou de convivência seja dimensionada pelas ações de divórcio ou de dissolução da união conjugal, forçoso é reconhecer, que essa ruptura que precede a judicialização (ou a via administrativa), porquanto provida de efeitos próprios, está a merecer, de logo, o seu atestado de ocorrência e de realidade jurígena perante o registro civil.
Noutro giro, pondere-se acerca do afastamento urgente do lar por um dos parceiros, quando em virtude de iminente risco à sua integridade física ou moral, ou à de seus filhos, o que não poderá impor-lhe prejuízos, inclusive o de acarretar eventual influência aos direitos da guarda dos filhos.
No tema, gize-se que o PLS nº 103/2002 (nº 5.172/01-CD), que introduzia o artigo 1.575-A ao Código Civil, no desiderato de descaracterizar um abandono voluntário, resultou vetado, em 11/10/2004 (Mensagem 675), ante a previsão do artigo 1.572 do mesmo Código, que implica na necessária judicialização
Aqui, mais uma vez, reclama-se da conveniência de os assentos registrais à margem do assento de casamento anotarem a ocorrência da separação de fato. No caso, levado a registro o afastamento imediato da moradia do casal, por um dos parceiros, por solicitação direta da pessoa interessada, tem-se, por obvio, dispensada a exigência de um pedido de separação de corpos ou de afastamento temporário a ser formulado em juízo. Desburocratiza-se o procedimento pela simples averbação do fato jurídico em registro civil, no resguardo dos interesses pessoais.
Outro elemento decisivo a ponderar cuida da potencialidade de risco. Pessoas separadas de fato sujeitam-se, realmente, a um potencial de risco durante o período de tempo indeterminado da separação.
Assinala Rosa Maria Nery: “Pode-se perceber a potencialidade de risco que experimentam as pessoas e o patrimônio da família por causa dessa ocorrência. Primeiro, com relação à fixação de parâmetros para o exercício do poder familiar para os filhos menores e incapazes; depois, a delimitação do patrimônio da família que se desfez e de outras, que potencialmente podem surgir em virtude de novos relacionamentos de antigos cônjuges e parceiros”. Exatamente esse o potencial de risco (5). Eis a conveniência de uma atualização imediata da situação familiar, para a segurança jurídica, em face do patrimônio comum preexistente.
No ponto, relevante a aferição dos efeitos patrimoniais na separação de fato, os cônjuges ou companheiros obrigam-se a demonstrar a não atualidade do convívio para afastar a parceria presumida na aquisição de bens materiais sobre os quais incida a titularidade de um ou outro. Em outras palavras, comprovar que determinados bens foram adquiridos somente após a separação de fato, desconstituindo, com efeito, a presunção legal do esforço comum.
Pondere-se, a respeito, que apesar de o Código Civil, em seu artigo 1.576, expressar que é a separação judicial que põe fim ao regime de bens, de há muito, registra a jurisprudência dos tribunais que o fato separação, independente da separação judicialmente decretada, como fato de vida, com efeitos jurídicos, deve orientar a partir de sua ocorrência a não comunicabilidade de bens que um ou outro ex-parceiro venha obter (STJ – 4a. Turma, REsp. n. 32.218-SP).
A 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial 555.771/SP, sob a relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, em 18/05/2009, assentou que “(…) 4. A preservação do condomínio patrimonial entre cônjuges após a separação de fato é incompatível com orientação do novo Código Civil que reconhece a união estável estabelecida nesse período, regulada pelo regime da comunhão parcial de bens (CC 1.725) 5. Assim, em regime de comunhão universal, a comunicação de bens e dívidas deve cessar com a ruptura da vida comum, respeitado o direito de meação do patrimônio adquirido na constância da vida conjugal”. (6)
De fato. Admitir a comunicação dos bens adquiridos após a separação de fato implicaria em benefício indevido ao outro e prejuízo considerável para aquele que veio a constituir patrimônio novo com seu próprio e único esforço. Em suma, os bens havidos depois da separação de fato, adquiridos por somente um dos parceiros, a este apenas pertencerão, certo a separação de fato constituir “o marco que finaliza o estado patrimonial” do casal. Ou seja, produz efeitos patrimoniais em favor de ambos, à medida que os bens de um ou de outro, após a separação, não mais se comunicarão. (7).
Nessa diretiva, visível a urgente necessidade da providência administrativa de solicitar-se perante o registro civil a averbação da separação de fato iniciada.
A demarcação registral do tempo inicial da separação de fato também se mostra juridicamente relevante no efeito de inibir/prevenir a eventual dilapidação e malversação de bens, durante a separação. Esse, um outro elemento justificador.
Bem, por isso, tem-se revelado oportuno, como medida conservativa de direitos, o arrolamento cautelar de bens, quando há comunhão, universal ou parcial dos bens integrantes do acervo patrimonial do casal, tudo a ensejar uma posterior partilha. Ponderável que no curso da separação de fato, arrolem-se os bens para sua conservação, antecedendo os processos de divórcio direto ou de dissolução de união estável.
Como incidente ao processo litigioso, ou antecedente à demanda, o arrolamento toma em rol de descrição os bens existentes, para cuidar da segurança de sua partilha, revelando-se providência urgente de incolumidade patrimonial. Aliás, nesse sentido, o artigo 855 do Código de Processo Civil de 1973, seguiu o modelo português, quando o artigo 421 do CPC lusitano assim estabelece: “Havendo fundado receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles”.
De todo o exposto, vejamos então:
(i) Incontroverso que à pessoa casada e separada de fato não se aplicam as condições suspensivas do artigo 1523, CC, no efeito da caracterização da união estável (artigo 1.723 § 2º, CC) (08), incontroverso também se admita que a mesma possa requerer, antes de mais, por razões próprias, o registro civil do seu novo estado familiar existente, o de pessoa separada, para a prevenção e garantia dos seus direitos. Essa simples e imediata formalização registral, o da separação de fato, descaracteriza a hipótese de abandono, evitando a usucapião familiar.
(ii) A dicção do artigo 1.830 do Código Civil, que exclui da condição de herdeiro o cônjuge separado de fato, após decorridos dois anos da separação; (excetuada a hipótese de não haver concorrido à ruptura da convivência conjugal) tem inegável relevância, a assinalar conveniente anotação em registro civil do fluxo temporal para os devidos efeitos legais que couber.
(iii) A separação de fato repercute, igualmente, nos contratos; a exemplo da locação residencial, onde citado em local diverso o locatário, quando dele separado e residindo no imóvel o outro cônjuge/companheiro. Este sofrerá os efeitos jurídicos do processo, à medida que não tenha obtido a oportunidade de intervir e atuar nos interesses da locação “intuitu familiae” (v.g., curando a mora). É dizer, em casos que tais, a separação de fato também reclamar a conveniência de sua exatidão temporal mediante registro civil.
(iv) Em todas as hipóteses, o par conjugal ou convivencial são partícipes integrais do processo de ruptura da união, pelo que para efeito de direitos e deveres, impõe-se cogitar e estabelecer, em registro civil, o devido marco temporal de tal ruptura de fato, diante de suas consequências jurídicas (9).
Inegável, em excelência de políticas públicas, seja admitida através de provimentos, averbação em registro civil, à margem dos assentos de casamento, da incidência fática da separação do casal, por quaisquer dos interessados.
Consabido um expressivo quantitativo de casais separados no país, como realidade fática indubitável (10), não obstante disponham do divórcio como direito potestativo, impõe-se pensar nessa alternativa mais acessível. Os fatos da vida merecem urgente tratamento adequado.
Fonte: Conjur
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