O certo é que na era do “eu” virtual e dos “fantasmas” digitais, os efeitos que as interferências dos atos virtuais podem causar na vida real têm sido pauta diária de doutrinadores e especialistas

 

É fato notório que as mídias sociais transformaram a forma como as pessoas se comunicam, criando, inclusive, novo nicho profissional antes nunca pensado, o do social media, profissional responsável por atualizar, monitorar, gerar conteúdo, dentre outras atribuições, na administração de marcas de pessoas jurídicas ou físicas.

 

E considerando que 66% da população brasileira está ativa nas redes sociais, dados divulgados pelo relatório Digital in 2019, elaborado pelas empresas We are Social e Hootsuite1, o ambiente virtual passa a ser terreno fértil para o cometimento de abusos de direitos e por vezes crimes que comumente só eram vistos nas interações pessoais do mundo real.

 

Para além da questão indiscutível da necessidade de incluir os bens digitais na herança (vez que hoje blogueiros, por exemplo, chegam a faturar cerca de R$ 500 mil reais por mês2), muitos são os questionamentos acerca da possibilidade de responsabilização do falecido, em seu favor ou desfavor, de atos que resultem ou tenham resultado em violações à imagem, honra, intimidade ou privacidade, sua ou de terceiros em relação a seus atos, em vida ou post mortem.

 

E por que isso? Porque hoje já é possível a programação de mensagens, envio de vídeos, documentos, dentre outros itens, por meio de diversos aplicativos, tais como SafeBeyond, Cake, Last Will and Testament, Se Eu Morrer Primeiro e Everest, após a morte.

 

Quem não gostaria de enviar uma mensagem para um filho que se forma na faculdade ou enviar um último adeus para quem ama? Mas e se o conteúdo das mensagens programadas de alguma forma causar danos a terceiros? Ferir a honra, a imagem, a intimidade ou privacidade de alguém?

 

Tais questões são muito importantes, pois além das pessoas vivas, que detém personalidade, sendo, portanto, sujeito de direitos, também o morto pode sofrer violação desses direitos, considerando os efeitos projetados no tempo e/ou provocar danos a terceiros, além de outras repercussões importantes dos usos destes aplicativos (validade das disposições testamentárias, por exemplo, em função de muitos deles terem sido desenvolvidos fora do Brasil).

 

Por certo, enquanto direito vitalício, o direito de personalidade (mesmo que se diga que este se extingue com a morte), continua a gozar de proteção, vez que há a concessão, dada pela lei, de que os parentes do morto requeiram amparo jurídico quando vislumbrarem qualquer violação, por exemplo, à honra ou à imagem da pessoa falecida.

 

Um exemplo de caso, em que a intimidade post mortem restou violada e que chamou bastante atenção da sociedade foi a divulgação de forma negligente do vídeo da necropsia e de fotos do corpo do cantor sertanejo Cristiano Araújo, falecido tragicamente em um acidente de carro em junho de 2015. Neste caso, a família processou a clínica responsável pelo preparo do cantor para o enterro, a funerária e a seguradora do plano funerário, requerendo danos morais por violação da intimidade do cantor morto.

 

Isso porque quando o ato ilícito atinge o morto, em verdade, está atingindo seus entes queridos vivos, mesmo que indiretamente, deixando clara a norma civilista quem detêm a legitimidade ativa para tutelar tais direitos, quando expressamente consigna que “em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”.

 

Mas e quando é o próprio falecido quem causa danos à terceiros após sua morte? Quem poderia responder por estes atos? Seria possível haver a responsabilização civil ou penal do morto ou de seus familiares?

 

Quando a responsabilização (ou ao menos o início desta) ocorre ainda em vida, por certo, não há discussão, posto que o espólio passa a integrar o polo passivo da ação já em curso e responde pelos efeitos reverberados pelos atos do falecido através do tempo.

 

Mas e quando o dano é causado por atos praticados após a morte, ou melhor dizendo, em programação post mortem, pelo falecido?

 

Muitas dúvidas têm surgido, a despeito do fato de os herdeiros terem claramente legitimidade ativa ad causam para pleitear a reparação dos danos morais suportados pelo de cujus, bem como responderem por empréstimos consignados, contratos não cumpridos, etc., mesmo que o suposto fato gerador tenha ocorrido após a morte.

 

Primeiramente, vale analisar a questão sob a ótica do fato para sua caracterização como ato ilícito. O ato ilícito pode ser conceituado como a conduta humana seja ela uma ação (conduta positiva) ou uma omissão (conduta negativa), de caráter voluntário, ou seja, com um animus (vontade) que revela a liberdade de escolha do agente, e que acaba por gerar, por conseguinte, efeitos jurídicos, danos, na esfera patrimonial ou psíquica de outrem.

 

Pela análise acima, de pronto, não haveria óbice para a responsabilização do espólio pelos atos praticados pelo falecido após a sua morte, desde que tal responsabilização tenha repercussão patrimonial e por certo no limite na herança a ser partilhada entre os herdeiros.

 

Mas o elemento morte, suprimiria de alguma forma do fato projetado no tempo o animus do agente ou a conduta?

 

Parece que não, vez que a despeito do efeito da vontade do agente ter sido projetado no tempo, o caráter voluntário e a liberdade de escolha permanecem preservados.

 

Na esfera criminal, no entanto, não se reúnem as condições exigidas pela lei, vez que o morto não pode ser sujeito passivo de nenhum delito, podendo ser apenas objeto material de um delito penal a ensejar responsabilização de terceiros.

 

De toda forma, é de extrema importância buscar os elementos do tipo penal e as suas circunstâncias, pois por vezes em função da administração de marcas de pessoas jurídicas ou físicas ser realizada por terceiros (social media), parcela de responsabilização pode recair sob estes, com repercussão direta na divisão de responsabilidades na ordem patrimonial, além de individualização de conduta punível criminalmente.

 

O certo é que na era do “eu” virtual e dos “fantasmas” digitais, os efeitos que as interferências dos atos virtuais podem causar na vida real têm sido pauta diária de doutrinadores e especialistas e ainda demandará de todos reflexões importantes acerca da célebre frase, adaptada: existe vida após a morte virtual?

 

Fonte: Migalhas

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