Da literatura alemã vêm os relatos das famosas aventuras (tão fantásticas quanto fantasiosas) do Barão de Münchhausen, que viajou em bolas de canhão e com um bando de patos. De todas as histórias, a mais interessante é aquela na qual o Barão escapou de um pântano puxando-se para cima pelos próprios cabelos!

 

Essa história remete imediatamente ao famoso trilema de Agripa, filósofo grego que questionava a possibilidade de se provar a verdade de uma teoria, pois isso dependeria de uma regressão infinita de fundamentos, de uma escolha arbitrária ou de uma petição de princípio ou circularidade no argumento. No conto do Barão de Münchhausen, a fuga do pântano nada mais é que uma representação narrativa da circularidade de que falava Agripa.

 

Pois bem. Hoje trataremos sobre a possibilidade de as pessoas optantes pelo lucro real adotarem a regra especial de apuração do ganho de capital nos imóveis rurais, estabelecida pelo artigo 19 da Lei nº 9.393/96.

 

O ganho de capital nada mais é que a diferença positiva existente entre o custo de aquisição de determinado bem e seu valor de venda. O artigo 501 do RIR/2018 estabelece que a sua determinação deverá considerar o valor contábil do bem, i.e., aquele registrado na escrituração do contribuinte, subtraído, se for o caso, da depreciação, da amortização ou da exaustão acumulada e das perdas estimadas no valor do ativo.

 

Em se tratando da renda ligada a atividades rurais, pelas especificidades desse setor, o legislador quis por bem estabelecer regras especiais (e.g., dedução integral do investimento no exercício da aquisição e o afastamento da trava de 30% para prejuízos fiscais). Da mesma forma, o ganho de capital apurado na venda de imóveis rurais também foi objeto de tratamento específico.

 

O imóvel rural, para fins tributários, possui uma definição estabelecida pela Lei nº 9.393/96, que dispõe, em seu artigo 1º, §2º, que “considera-se imóvel rural a área contínua, formada de uma ou mais parcelas de terras, localizada na zona rural do município”. Esse dispositivo deve ser lido conjuntamente ao CTN, que define zona rural como o conceito complementar de zona urbana (artigo 32, §1º do CTN).

 

A Lei nº 9.393/96 estabeleceu, em seu artigo 19, uma regra especial para a apuração do ganho de capital na venda desses imóveis, verbis:

 

“Art. 19. A partir do dia 1º de janeiro de 1997, para fins de apuração de ganho de capital, nos termos da legislação do imposto de renda, considera-se custo de aquisição e valor da venda do imóvel rural o VTN declarado, na forma do art. 8º, observado o disposto no art. 14, respectivamente, nos anos da ocorrência de sua aquisição e de sua alienação.

 

Parágrafo único. Na apuração de ganho de capital correspondente a imóvel rural adquirido anteriormente à data a que se refere este artigo, será considerado custo de aquisição o valor constante da escritura pública, observado o disposto no art. 17 da Lei nº 9.249, de 26 de dezembro de 1995.”

 

Essa regra estabeleceu que, para os imóveis rurais adquiridos após o dia 1/1/1997, a base de cálculo seria apurada pelo confronto entre o Valor da Terra Nua (VTN) declarado no Documento de Informação e Apuração do ITR (DIAT) no ano da alienação e no ano da compra. O VTN é declarado pelo contribuinte, nos termos do artigo 8º, §1º da Lei nº 9.393/1996, e consiste no preço de mercado do imóvel, entendido como o valor do solo com sua superfície e respectiva mata, floresta e pastagem nativa ou qualquer outra forma de vegetação natural, excluídos os valores de mercado de construções, benfeitorias, culturas e outros.

 

Com essa regra, o legislador traçou um marco temporal para dois regimes distintos do ganho de capital de imóveis rurais: 1) aos adquiridos após 1/1/1997, o parâmetro será o VTN; 2) aos adquiridos antes de 1/1/1997, o custo de aquisição será efetivo critério, constante na escritura pública, observado o disposto no artigo 17 da Lei nº 9.249/95 [1].

 

A despeito da clareza da redação do dispositivo, a RFB exarou uma interpretação restritiva dessa regra, por meio da SC Disit SRRF06 nº 31/2011, estabelecendo que “Na alienação de propriedade rural, a determinação do ganho de capital obedece a forma de tributação utilizada pela empresa no período de apuração em que ocorre a venda”. Nesse sentido, se a pessoa jurídica for tributada pelo lucro real, a determinação do ganho de capital obedeceria ao disposto no § 1º do artigo 418 do RIR/99, por outro lado, se tributada pelo lucro presumido, aplica-se a regra especial e se adota o VTN constante do DIAT.

 

Causa espécie a distinção trazida pela RFB vis-a-vis a redação do artigo 19 da Lei nº 9.393/96. Ao compulsar os fundamentos da manifestação, se verifica um único argumento, verbis:

 

“O artigo acima transcrito é a base legal do art. 523 do RIR/1999, dispositivo que está inserido no Livro II – Tributação das Pessoas Jurídicas, Título IV – Determinação da Base de Cálculo, Subtítulo IV – Lucro Presumido, Capítulo II – Ganhos de Capital e Outras Receitas, e que trata do ‘Custo do Bem na Alienação de Imóvel Rural’, (…)” [grifo no original]

 

Em suma, a razão da distinção realizada é o fato de a regra específica ter sido consolidada pelo RIR/99 no Título relativo às pessoas jurídicas optantes pelo lucro presumido (o mesmo raciocínio é aplicável às pessoas físicas, pela inclusão dessa regra também no artigo 136 do RIR/99). O entendimento da RFB, se baseia em uma interpretação topológica da consolidação.

 

A consolidação é alvissareira, por concentrar diversos textos normativos correlatos que, por vezes, se espraiam no nosso vasto ordenamento. Trata-se de técnica legislativa de exame, triagem, seleção e reunião de leis em coletâneas, facilitando a sua consulta [2], mas a sua característica principal, conforme estabelecido tanto no artigo 13, §§ 1º e 2º, da LC nº 95/98, é a ausência de modificação do alcance dos dispositivos consolidados, preservando-se o seu conteúdo normativo original, mesmo diante de alterações redacionais. Em outras palavras, a consolidação não se presta a restringir ou ampliar o alcance das normas jurídicas, senão organizar seus textos.

 

Compulsando a posição do Carf sobre o tema, em poucas decisões, a situação não discrepa.

 

No acórdão nº 1302-001.841 [3], o contribuinte invoca a aplicação do artigo 19 da Lei nº 9.393/96, mas a relatora rechaça a sua aplicação ao caso, sob o argumento de que “[a] referida disposição integra o Subtitulo IV, destinado a regular a apuração do IRPJ segundo a sistemática do lucro presumido”, e que como ela seria optante do lucro real, a apuração se daria pela regra geral. O mesmo raciocínio foi utilizado no acórdão nº 1402-002.615 [4], ao afirmar que o “o indigitado artigo 19 da Lei referida, encontra-se inserido DENTRO do subtítulo que cuida do Lucro Presumido”, mas sem esclarecer por que a decisão não seria aplicável aos optantes pelo lucro real.

 

Por fim, o acórdão nº 9101-004.068 [5], proferida no mesmo processo do acórdão 1302-001.841, citado acima, adotou exatamente o mesmo argumento topológico da decisão recorrida. Não obstante a aridez que as decisões e a manifestação da RFB trazem sobre o tema, a declaração de voto da conselheira Cristiane Costa, no acórdão da CSRF, talvez nos dê indícios da origem dessa restrição.

 

Em seu voto, ela afirma que o caput do artigo 19 do Lei nº 9.393/96 não estabelece qualquer ressalva quanto à opção de tributação do contribuinte, para os imóveis adquiridos após 1/1/1997, mas que, em relação ao parágrafo único, “[seria] clara a ressalva para aplicação apenas para pessoas jurídicas ‘não tributadas com base no lucro real’. (termo empregado no artigo 17, da Lei nº 9.249/1995)”. Eis aqui a origem do equívoco!

 

Parece-nos que a interpretação da RFB, ainda que de forma não expressa nos acórdãos, nem na SC Disit nº 31/2011, se baseia no argumento de que como o p.u. do artigo 19 da Lei nº 9.393/96 teria restringido a sua aplicação apenas às pessoas não optantes pelo lucro real, para a apuração do ganho de capital dos imóveis adquiridos antes de 1/1/1997, essa limitação se aplicaria também ao caput — o que coincide com a reprodução da regra apenas nos campos do lucro presumido e das pessoas físicas, no RIR/99.

 

Há aqui duas espécies de equívoco: uma de ordem interpretativa e outra de ordem técnica.

 

Sob a perspectiva interpretativa, deve-se recordar do artigo 11, III, “c” da LC nº 95/1998, que estabelece caber aos parágrafos expressarem os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida. Interpreta-se o parágrafo à luz do caput, e não o contrário. No caso, se faz o contrário do que a legística e a hermenêutica recomendam, pegando uma suposta exceção estabelecida no parágrafo e extrapolando-a para alcançar também a disposição do caput. Mas esse sequer é o principal problema.

 

Sob o ângulo técnico, a interpretação da menção ao artigo 17 da Lei nº 9.249/95 como uma restrição implica ignorar todo o contexto de surgimento da referida regra.

 

A edição do artigo 4º da Lei nº 9.249/95 revogou expressamente a sistemática existente de correção monetária das demonstrações financeiras, com efeitos a partir de 1/1/1996. Até então, as pessoas optantes pelo lucro real poderiam promover a correção monetária dos seus imóveis, com fundamento na Lei nº 7.799/1989 e na Lei nº 8.200/1991. Por outro lado, as pessoas não optantes pelo lucro real (incluindo pessoas físicas) não poderiam realizar essa correção monetária, registrando seus ativos pelo valor de aquisição.

 

Com o fim da correção monetária do balanço, as pessoas não optantes pelo lucro real seguiriam com seus ativos sem qualquer atualização do seu valor, gerando o risco evidente de, ao se cotejar o valor de aquisição e o valor da alienação, em uma eventual alienação, tributar-se principalmente inflação, e não renda. Para corrigir essa distorção, o artigo 17 da Lei nº 9.249/95 vem precisamente autorizar que essas pessoas, em relação aos bens adquiridos antes do final de 1995, pudessem corrigir o seu custo de aquisição, tomando-se por base o valor da UFIR vigente em 1º de janeiro de 1996.

 

A função dessa regra é clara: evitar que as pessoas no lucro real tivessem uma vantagem tributária (refletida nos custos de aquisição corrigidos dos ativos) sobre as demais (que mantinham seus ativos pelo valor histórico), gerando distorções na apuração do ganho de capital.

 

Diante disso, a razão pela qual o artigo 17 da Lei 9.249/95 se refere apenas às pessoas não tributadas pelo lucro real se torna óbvia: as optantes pelo lucro real já corrigiam o valor dos ativos até 1995, com base em outras regras, daí tal mecanismo de neutralização estabelecido pelo artigo 17 da Lei nº 9.249/95 ser destinado apenas àqueles que, até então, não podiam atualizar o valor dos bens. Não havia necessidade alguma de que se fizesse menção às empresas do lucro real, portanto, sob pena de redundância.

 

Além disso, o p.u. do artigo 19 da Lei nº 9.393/96 em momento algum restringe a disposição às pessoas referidas no artigo 17 da Lei nº 9.249/95, mas apenas determina que se observe a referida regra. Trata-se, à evidência, de uma referência para que não se ignore a correção monetária excepcional estabelecida naquela norma, para as pessoas não optantes pelo lucro real, uma vez que as optantes já teriam feito essa correção até o final de 1995.

 

Pois bem, analisando o argumento da RFB, verifica-se que ele se baseia exclusivamente na forma como a regra foi estruturada topologicamente dentro do RIR, para dar-lhe uma interpretação mais restritiva do que consta na literalidade do artigo 19 da Lei nº 9.393/96. Por outro lado, é notório que as consolidações são estruturadas no Brasil de modo a refletir o entendimento da Receita sobre a legislação.

 

Há aqui, tal qual o Barão de Münchhausen ao se puxar para fora do pântano, uma evidente e desconcertante circularidade: a RFB estrutura topologicamente os textos no RIR conforme sua interpretação, e interpreta conforme a posição deles no regulamento!

 

Paralelamente, sequer uma linha é desenvolvida para explicar como se chegou à interpretação que orientou a elaboração do RIR/99, e que teria o condão de quebrar essa circularidade.

 

Pela análise do dispositivo, chegamos à conclusão de que essa interpretação provavelmente se baseia em uma leitura duplamente equivocada do p.u. do artigo 19 da Lei nº 9.393/96: a um, por aplicar uma suposta restrição do parágrafo ao caput do dispositivo, invertendo a ordem lógica de aplicação; a dois, por enxergar restrição onde há uma menção do legislador para que se observe a correção monetária especial dos imóveis autorizada aos não optantes do lucro real, já que aos optantes esse faculdade já existia até o final de 1995.

 

Como se vê, a RFB — e o Carf, por endosso — optou por ocultar, sob um argumento flagrantemente circular, um outro problema, mais grave, que é a discreta adoção de um ponto de partida arbitrário, qual seja a interpretação do p.u. do artigo 19, que ignora todo o contexto normativo em que ele se insere.

 

O argumento circular e o ponto de partida arbitrário não nos convencem, e tampouco deveriam convencer qualquer um que se debruce desassombrado e tecnicamente sobre a matéria. Tanto é assim que o TRF da 3ª Região, ao analisar essa questão, vem reconhecendo que o artigo 19 da Lei nº 9.393/96 “não diferencia a apuração do imposto de renda com base no lucro real ou no lucro presumido” [6], e que, no tocante ao argumento topológico, “não seria possível avistar exceção implícita (…), de modo a permitir que a essência substancial da regra legal fosse inutilizada por norma regulamentar de apuração de ganho de capital na alienação de bens em geral para a apuração do lucro real” [7].

 

O tema demanda urgentemente uma reanálise, para que se enfrente com seriedade o fundamento topológico (e a restrição que ele oculta) que, por mais inverossímil que soe, vem sendo contado e recontado por meio dos acórdãos do Carf, como as histórias do Barão de Münchhausen, estas certamente de leitura e desfecho mais agradáveis.

 

Fonte: Conjur

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