A regra de impenhorabilidade do bem de família, insculpida na Lei nº 8.009/90 e referendada pela Súmula nº 364 do Superior Tribunal de Justiça, tem como escopo, dentre outros fatores, o de resguardar o mínimo existencial para a família do devedor, viabilizando, sobretudo, a tutela da dignidade da pessoa humana.

 

Considera-se, para tanto, como bem de família, o único imóvel utilizado pelo casal — e também por solteiros, separados e por viúvos, conforme Súmula nº 364 do STJ — como moradia permanente da entidade familiar, não podendo ser penhorado em execução e não respondendo por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, exceto quando verificadas as hipóteses previstas nos artigo 3º e 4º da supramencionada lei.

 

Para além da proteção prevista na Lei nº 8.009/90, nomeada como impenhorabilidade do bem de família pela via legal, é permitida, de igual modo, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido das pessoas que convencionam tal proteção, a instituição do bem de família pela via voluntária (convencional), que se realiza mediante registro imobiliário, consoante permissivo do artigo 1.711 do Código Civil. Isso quer dizer que os cônjuges, a entidade familiar ou até os solteiros podem, por livre convenção, instituir parte de seu patrimônio (até um terço) como bem de família, por meio de escritura pública ou testamento.

 

Tal hipótese deflagra dois efeitos, que se consubstanciam 1) na impenhorabilidade limitada, de modo que sobre imóvel não se recaem dívidas futuras, salvo obrigações tributárias referentes ao próprio bem e despesas condominiais, nos moldes do artigo 1.715 do CC; e 2) na inalienabilidade relativa, em que o bem de família voluntário só poderá ser alienado com a autorização dos interessados, consoante artigo 1.717 do CC.

 

Merece atenção o fato de que, tal como preliminarmente abordado, são três as exceções à impenhorabilidade do bem de família quando instituído pela forma convencional (ou voluntária), enquanto que, na impenhorabilidade pela via legal, a Lei nº 8.009/90, nos moldes dos artigo 3º e 4º, são previstas sete exceções para a impenhorabilidade do bem de família.

 

No entanto, verifica-se que para além das exceções previstas no rol do artigo 3º da Lei 8.009/90, o entendimento do STJ vem se sedimentando no sentido de mitigar a proteção ao bem de família, fazendo exsurgir, por exemplo, a discussão acerca de bem de família no que tange às frações com destinações distintas e separadas uma da outra, permitindo, nesses casos, vislumbrar-se a penhora da fração de uso comercial, por exemplo.

 

Para fins didáticos, o que se nota, em alguns casos práticos, é que sobre a matrícula do bem considerado de família, o proprietário do imóvel edifica uma segunda construção, sendo, em muitas oportunidades, uma unidade de cunho comercial e a outra residencial.

 

Ora, em tais hipóteses, é absolutamente factível a penhora sobre parte do imóvel, quando este se revestir de dupla destinação (comercial e residencial), desde que preservada a moradia da família, havendo a penhora da fração comercial.

 

Sobre o tema, o STJ parece ter colocado uma pá de cal sobre as discussões, ao reiteradamente decidir no sentido de que, observadas as peculiaridades do caso e, como não há parâmetros que determinam uma extensão específica do imóvel residencial impenhorável, admite-se seu fracionamento, contanto que não descaracterize o bem (STJ, AgInt no AREsp 1704667/SP, relator ministro Raul Araújo, 4.ª T., j.  22/03/2021).

 

O ministro Luis Felipe Salomão, sobre a temática, reforça ainda que a hipótese de desmembramento do bem de família em muito se distingue da proteção extensiva de impenhorabilidade imposta àquele único bem do devedor, no qual ele não reside, mas cujos frutos dos aluguéis são destinados à subsistência de sua família.

 

Trocando em miúdos, a impenhorabilidade que também protege o único bem do devedor que é objeto de locação a terceiros (consoante Súmula nº 486 do STJ), pelo fato de lhe gerar frutos destinados à sua subsistência ou de sua família, em nada se assemelha com o imóvel que possui mais de uma edificação (uma comercial e outra residencial) e de possível desmembramento, visto que, nessa última hipótese, a família tem garantido seu direito à moradia em uma fração do imóvel e tem permitida penhora da outra parte para adimplir os débitos com seus respectivos credores. (STJ, AgInt no AREsp 1591574/MS, 4.ª T., relator ministro Luis Felipe Salomão, j. 25/02/2022).

 

Na verdade, o que a iterativa jurisprudência do STJ quis sedimentar é que não configura descaracterização do bem de família o fracionamento do imóvel, quando uma das quotas ainda permitir a moradia e dignidade da família. Isto porque, se o objetivo precípuo da normativa que preserva o bem de família é garantir a residência e o mínimo existencial, de outro modo não se pode olvidar que, em muitos casos, o devedor se escuda no bem de família para se locupletar.

 

Diante disso, restou clarividente que, o que se busca consolidar, é que existem situações em que o fracionamento e consequente possibilidade de penhora do imóvel emerge como a medida mais justa e viável para satisfazer o crédito, sem, com isso, confrontar o direito social à moradia e mantendo, por conseguinte, incólume a dignidade do devedor.

 

É possível, portanto, permitir o desmembramento em hipóteses que não acarretem descaracterização da área residencial do imóvel. Em via transversa, o consectário lógico indica ser inviável o desmembramento quando existirem quaisquer prejuízos para o mínimo abrigo existencial do devedor, por não garantir, de maneira concomitante, o direito do credor e do devedor.

 

Fonte: Conjur

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