A realidade social constrói e molda o ordenamento jurídico, refletindo os interesses e as necessidades do povo. Não é tarefa fácil a atualização do Direito porque não há como precisar quando o presente virou passado. Ademais, a quem cabe esta tarefa de verificar a consonância entre a realidade social e a lei? Certo que esta não é a única fonte do Direito. As decisões judiciais lastreadas em princípios garantem o julgamento a partir de contornos mais flexíveis e ajustáveis às particularidades de cada caso concreto, já que os princípios não gozam da rigidez própria da lei. No entanto, esta prática por via da atuação do Poder Judiciário é fruto de intenso debate.

 

Sem dúvidas, a sociedade brasileira passou por grande transformação cultural nos últimos 50 anos e isto refletiu diretamente sobre o Direito. Assim, a Carta Política de 88 assenta-se sobre contornos sociais e humanos anteriormente não presentes em nossa legislação. O substrato desta mudança importa no surgimento de leis pautadas no respeito ao ser humano, na boa-fé, na afetividade e na preocupação social.

 

Tudo isto apresenta-se mais intenso nas relações familiares, repousando no Direito de Família calorosa discussão. Assim, o tema proposto nesta breve reflexão encontra raízes no comportamento humano e especialmente no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que anulou registro de nascimento de filho ao acolher vício de manifestação de vontade do pai comprovadamente não biológico (REsp 1.741.849/SP) e nas decisões subsequentes.

 

As questões parentais no Brasil foram sempre tratadas pela doutrina de forma muito cuidadosa e a esfera familiar sempre foi um lugar de grande respeito ao espaço privado. Ao longo de nossa história, muitas legislações dão conta dos preconceitos que norteiam as questões filiais e suas repercussões jurídicas. No entanto, atravessamos algumas barreiras impostas pela consanguinidade em direção à proteção dos vínculos resultantes do amor e da afinidade. Muitos avanços ocorreram nos últimos 15 anos.

 

O antigo “filho de criação” recebeu nova vestimenta e repercussão no Direito, ao ponto de não haver distinção no mundo jurídico no que diz respeito aos direitos garantidos por lei comparado ao fornecido à filiação de origem biológica. A parentalidade socioafetiva identifica as relações maternas e paternas no seio familiar em busca da consolidação do vínculo construído ao longo dos anos referendado no amor, no respeito e na afinidade. Não que essas relações nascidas a despeito do sangue sejam melhores. Representam vínculos construídos de forma legítima tanto quanto as demais.

 

Atualmente os Provimentos 63 e 83 do CNJ permitem o reconhecimento da maternidade/paternidade unilateral socioafetiva por via administrativa, em procedimento consensual, garantindo a resolução de muitas questões relacionais no ambiente doméstico sem a interferência do Poder Judiciário.

 

No entanto, para o seu reconhecimento não é suficiente apenas a declaração daquele ou daquela que deseja garantir o vínculo parental como filho ou filha e como pai ou mãe. Atenção para o aspecto da comprovação da convivência familiar, do laço de afinidade e de afetividade, ou seja, do tratamento filial consubstanciado em provas como fotos, declarações escolares e de acompanhamento médico, entre outras.

 

Cabe ao tabelião avaliar este arcabouço e, consequentemente, deferir a averbação correspondente. Ou seja, volta-se ao passado para que seja demonstrado o nascimento e o desenvolvimento do laço parental forjado nas ações cotidianas entre pai/mãe e filho/filha. Esse passado, vivido dia após dia, não muda, não se apaga. Difícil esquecer cada momento vivido numa relação familiar, em especial se esta relação for entre pais e filhos.

 

Assim, os referidos Provimentos do CNJ apontam para a manifestação da vontade do pai/mãe e da demonstração do vínculo.  Sem isto não poderá ocorrer o reconhecimento por via dos Tabelionatos. Mas há outros caminhos, construídos pelos nossos tribunais e apoiado na doutrina, a partir de ações judiciais.

 

No entanto, o REsp 1.741.849/SP coloca toda esta construção relacional fática sob questionamento, tornando inseguro os contornos até aqui esposados. O STJ garantiu ao marido enganado a extinção do vínculo parental em face das filhas, apoiado no erro substancial, ou seja, na manifestação de vontade viciada.

 

Trata-se de caso em que o tribunal convenceu-se do desconhecimento pelo genitor registral da ausência de vínculo biológico com as filhas nascidas durante relação de casamento. Acolhendo o erro substancial do registro de nascimento, pautado na conclusão que o pai foi induzido em erro ao tempo do ato registral, o vínculo paterno-filial foi invalidado, mesmo considerando dez anos de convivência parental socioafetiva.

 

Neste sentido, no site do próprio tribunal consta em notícias o seguinte título: “Longo período de vínculo socioafetivo não impede desconstituição da paternidade fundada em erro induzido” [1].

 

Repousa sobre os filhos nascidos durante o casamento a presunção de paternidade (artigo 1.597, CC), motivo pelo qual são daquele marido os filhos havidos de sua esposa. No entanto, a filiação socioafetiva caminha ao lado da filiação biológica, garantindo igual status perante nosso ordenamento jurídico (RE 898.060/SC e Repercussão Geral 622). No julgamento do REsp 1.741.849/SP, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, e provido por unanimidade, o tema foi enfrentado, conforme segue:

 

Mesmo quando configurado o erro substancial no registro civil, é relevante investigar eventual existência de vínculo sócioafetivo entre o genitor e a prole, na medida em que a inexistência vínculo paterno-filial de natureza biológica deve, por vezes, ceder à existência de vínculo paterno-filial de índole sócioafetiva [2].

 

Isso demonstra a importância do vínculo socioafetivo no Brasil, devendo ser investigado mesmo na hipótese de erro de manifestação de vontade como tratado no caso paradigmático.

 

No entanto, penso que o tema não foi enfrentado de forma a afastar o vínculo pela ausência de constituição de relação paterno-filial com suporte na paternidade socioafetiva. Apura-se do inteiro teor do acórdão que: “longa convivência entre pai e filhos que deve ser sopesada com a superveniente ausência de socioafetiva por longo período em decorrência do rompimento abrupto e definitivo da relação paterno-filial” [3].

 

Observe-se que a sentença judicial reconheceu o erro substancial sobre o registro de nascimento, mas manteve a paternidade em relação a uma das filhas com fundamento na constituição da paternidade socioafetiva. Em grau de recurso, o TJSP entendeu pelo reconhecimento do vínculo socioafetivo em favor das duas filhas.

 

Apesar do erro constatado sobre o registro civil das filhas, a investigação da relação socioafetiva configura-se de suma importância, haja vista que a Terceira Turma do STJ, em 2018, já havia decidido nos exatos termos do REsp 1.698.716/GO que a inexistência de vínculo paterno-filial de natureza biológica deve ceder à existência de vínculo paterno-filial de índole socioafetiva, especialmente porque é necessário tutelar adequadamente os direitos da personalidade do filho que não pode, após décadas de convivência familiar e de ter consolidada a imagem de seu pai, simplesmente ver apagadas as suas memórias e os seus registros [4].

 

Também é importante apontar que o recorrente, pai registral, concordou com o estabelecimento do vínculo socioafetivo. Contudo, alega que foi interrompido desde a descoberta da inexistência de vínculo biológico.

 

Em seu voto, a ministra relatora pontua que “é admissível o desfazimento do vínculo registral na hipótese de ruptura superveniente dos vínculos afetivos”. O Tribunal chama atenção para a “paternidade socioafetiva ficcional” (REsp 1.741.849/SP) [5].

 

O STJ garantiu com este fundamento a estabilidade e a segurança pautada no princípio da boa-fé do declarante, tendo lastreado caminho mais técnico com fulcro na base do Direito Civil, ao garantir direito subjetivo ao pai enganado de apagar o vínculo parental vivenciado por mais de uma década de convivencial doméstica com as filhas, considerando também o afastamento parental após descoberta da ausência de vínculo biológico.

 

Esta posição não parece atender à nova sistemática do Direito de Família, sensível ao comportamento humano lastreado na afetividade e na afinidade dos laços parentais. Com a decisão do STJ, as filhas perderam não apenas o pai, mas também todo os parentes que decorrem da linha paterna (avós, tios, tias, primos, entre outros), além dos direitos concernentes à alimentos, herança, convivência familiar, tão importantes em nossa sociedade e respaldados na Constituição Federal, no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

 

A análise dos laços socioafetivos volta-se para o passado e não para o futuro. A configuração da relação de afeto e afinidade recai sobre as memórias e as vivências e não sobre o comportamento futuro. No caso, o pai escolheu livremente romper a convivência com as filhas com o objetivo de apagar a relação paterno-filial já consolidada..

Daí falar-se em posse do estado de filiação. Para Paulo Lôbo,

 

A aparência do estado de filiação revela-se pela convivência familiar, pelo efetivo cumprimento pelos pais dos deveres de guarda, educação e sustento do filho, pelo relacionamento afetivo, enfim, pelo comportamento que adotam outros pais e filhos na comunidade em que vivem [6].

 

Em posterior julgado pela mesma Turma do STJ, de relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, foi reafirmado que a presença do vício de consentimento e a ausência de relação socioafetiva garantem a anulação da paternidade [7].

 

Sobre este julgado, há alguns pontos a considerar: 1) o filho foi fruto de uma relação casual; 2) o vício de manifestação de vontade foi comprovado; 3) os genitores não passaram a se relacionar como casal a partir da perfilhação; 4) ficou demonstrado que não houve convivência parental a configurar os elementos necessários para o estabelecimento de uma relação socioafetiva com o pai registral.

No mesmos sentido, o REsp 1.829.093/PR:

 

“[…] Para ser possível a anulação do registro de nascimento, é imprescindível a presença de dois requisitos, a saber: 1) prova robusta no sentido de que o pai foi de fato induzido a erro, ou ainda, que tenha sido coagido a tanto e 2) inexistência de relação socioafetiva entre pai e filho. […]” [8].

 

As relações humanas são complexas e, por vezes, os vínculos biológicos parentais não se consubstanciam em relações de afetividade e de afinidade a garantir uma relação para toda a vida, e do contrário, os vínculos biológicos não são desfeitos. Desta forma, não há fundamento jurídico que sustente o desfazimento do vínculo socioafetivo em virtude do afastamento relacional como experimentado no caso posto. Falar em relacionamento ficcional na socioafetividade abre caminho também para a mesma construção nas relações biológicas.

 

O estudo do afeto nas relações humanas dentro do contexto jurídico encontra outros campos, mesmo no Direito de Família: nas entidades familiares como uniões estáveis heteroafetivas e homoafetivas, no abandono afetivo, na alienação parental, entre outros. O professor Ricardo Calderón desenvolve trabalho nesta área, apontando projeções da afetividade [9].

 

Sob muitos aspectos, o princípio da afetividade é estudado sob o viés do  tempo, como se o lapso temporal fosse componente significativo para a análise da natureza jurídica das relações ou para a verificação de consequências tratadas pelo Direito. O comportamento humano significativo agregado ao tempo é objeto de análise com repercussão para o Direito como ato-fato jurídico.

 

Nesse contexto, quando reconhecido no meio social como ato contínuo no tempo, o afeto pode apresentar consequências jurídicas, como pontua o prof. Rodrigo da Cunha [10].

 

Com isto, a presente provocação sobre o verdadeiro lugar da socioafetividade nas relações parentais no Brasil se faz importante a fim de seguirmos coerentes com os caminhos escolhidos.

E citando mais uma vez Paulo Lôbo: “A posse do estado de filiação, consolidada no tempo, não pode ser contraditada por investigação da paternidade fundada em prova genética” [11].

 

Fonte: Conjur

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