O art. 32, § 2º da lei 4.591/64 já passou por diversas transformações legislativas. Quando editada a Lei de Incorporação Imobiliária, o dispositivo aduzia que os contratos de compra e venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão de unidades autônomas “serão também averbáveis à margem do registro de que trata este artigo”[1].

 

Em 2001, com a edição da MP 2.221/01, o dispositivo foi alterado para determinar a irretratabilidade dos referidos instrumentos, bem como para conferir direito real oponível a terceiros e direito à adjudicação compulsória[2]. Ao ser convertida na lei 10.931/04, a redação foi brevemente alterada, sem grandes modificações[3].

 

O dispositivo cumpria bem o seu papel, sobretudo ressaltando (ainda que desnecessariamente em razão da obviedade) a irretratabilidade do contrato. Por isso causou alguma surpresa quando a MP 1.085/22, determinou a revogação do dispositivo.

 

Alguns colegas, de maneira informal, afirmaram que talvez a ideia do legislador tenha sido adequar o art. 32 § 2º à lei 13.786/18. Isso porque a referida Lei (intitulada como ‘Lei dos Distratos’), dentre as suas diversas inclusões, permitiu o exercício do retrato do contrato, com a possibilidade do exercício do direito de arrependimento pelo adquirente (art. 67-A, § 10º) e, portanto, o contrato não seria mais absolutamente irretratável, o que justificaria a revogação.

 

Contudo, em nosso entendimento, não havia qualquer contrariedade entre os dispositivos porque, o art. 67-A, § 12º elucidava a questão declarando que “transcorrido o prazo de sete dias a que se refere o § 10º deste artigo sem que tenha sido exercido o direito de arrependimento, será observada a irretratabilidade do contrato de incorporação imobiliária, conforme o disposto no § 2º do art. 32”. O sistema, em nossa opinião, era coeso.

 

O fato é que após a edição da MP 1.085 e a revogação do art. 32 § 2º, parte respeitada da doutrina, a exemplo do Prof. Carlos E. Elias de Oliveira, passou a defender que os contratos referidos no dispositivo não seriam mais irretratáveis, mesmo após o transcurso do prazo do direito de arrependimento. Segundo o autor, teria sido decretado o “fim da irretratabilidade compulsória dos contratos de alienação das unidades autônomas” o que permitiria ao adquirente ficar “livre para resilir o contrato por motivos pessoais (como eventual emergência financeira), sem necessidade de justificativas”[4].

 

Respeitosamente, discordamos do posicionamento do colega Carlos Elias de Oliveira. Até porque, embora momentaneamente o art. 32 § 2º tenha sido revogado, nunca houve a revogação do art. 67-A, § 12º, que ainda determina que uma vez transcorrido o prazo conferido para o exercício do direito de arrependimento, o contrato é irretratável.

 

Ademais, a irretratabilidade é de suma importância no âmbito da incorporação imobiliária e foi justamente o principal fundamento para a edição da intitulada Lei do Distrato. Retomemos e relembremos essa questão.

 

É verdade que no âmbito da incorporação imobiliária, embora as partes, regra geral, estabeleçam a irretratabilidade da avença, com o passar dos anos, a jurisprudência passou a permitir a iniciativa unilateral de alguns adquirentes que, embora não apontassem culpa atribuível ao vendedor, buscavam a extinção do contrato de promessa de compra e venda. Na maioria dos casos, eram adquirentes que manifestavam à incorporadora o desejo de extinguir a avença em razão de dificuldades financeiras.

 

A respeito do tema, José Osório de Azevedo Junior[5] foi um dos primeiros a tratar da “questão particularmente difícil” para saber “se o próprio compromissário comprador que deixou de pagar o preço pode tomar a iniciativa de dar o contrato por resolvido e pedir a devolução das prestações pagas”.

 

A questão, de fato, não era simples de resolver. Se, por um lado, a promessa de venda e compra, assim como os demais contratos em geral é instrumento irretratável, não permitindo a mera desistência, o que fazer nas situações em que o adquirente não possui mais condições de prosseguir adimplindo as prestações?

 

Nesse sentido, nos anos 1990, surgiram os primeiros acórdãos no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que passaram a admitir que mesmo sendo o inadimplemento fato imputável ao devedor, a ação poderia ser de sua iniciativa, porque a imputação seria de culpa e não dolo. Em voto de relatoria do próprio Des. José Osório de Azevedo Junior[6], entendeu-se pela possibilidade de “vencimento antecipado do contrato” quando houvesse “motivo eticamente justificável” para a extinção contratual.

 

No mesmo sentido, julgados do Superior Tribunal de Justiça também permitiam a iniciativa do adquirente para extinguir unilateralmente o contrato, com destaques para acórdãos de relatoria do Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior[7] que, em sua obra[8] também manifestou a possibilidade de o devedor propor ação para resolver o contrato quando fundamentasse o seu pedido na “[…] superveniente modificação das circunstâncias, com alteração da base objetiva do negócio. É o que tem sido feito com muita intensidade relativamente a contratos de longa duração para aquisição de unidades habitacionais, em que os compradores alegam insuportabilidade das prestações”.

 

Contudo, referidos julgados eram, nos anos 1990, quase inexpressivos e aplicados, na maioria das vezes, quando havia comprovada impossibilidade de cumprimento das obrigações financeiras dos adquirentes[9].

 

Com o passar dos anos, todavia, em algum desvio jurisprudencial, tornaram-se mais comuns as decisões judiciais que permitiam a extinção do vínculo contratual em razão de pleito unilateral formulado pelo adquirente não apenas quando este discordava dos valores envolvidos para retenção, mas, também, em situações em que o comprador se mostrava meramente insatisfeito com a aquisição.

 

Em alguns casos, embora as provas indicassem que o comprador tinha recursos para prosseguir com a contratação, mesmo não havendo inadimplemento do incorporador, a ação era julgada procedente para extinguir o contrato, tal como se fosse uma faculdade dos contratantes seguirem vinculados ao contrato. Nesses termos, fácil identificar julgados que, a exemplo disso, permitiam, a ‘resilição unilateral’ do compromisso de compra e venda por ‘conveniência do comprador'[10].

 

Assim, a jurisprudência, sobretudo a partir de 2009, passou a acolher o pedido do adquirente para a extinção do vínculo contratual, sem a necessidade de serem comprovados maiores fundamentos. Em determinada decisão judicial, chegou-se a dizer que “quanto ao desejo de rescindir o contrato, temos que este é garantido a qualquer parte integrante de um acordo, já que ninguém é obrigado a manter-se no cumprimento de um negócio ao qual não mais lhe interessa[11]”.

 

A respeito do tema e em razão dos casos que se avolumavam, algumas súmulas foram editadas. Nesse sentido, cite-se a Súmula 1 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo[12], publicada em 2010 e a Súmula 543 do Superior Tribunal de Justiça[13], publicada no ano de 2015.

 

Tal como bem pontuado por Francisco Loureiro[14], referidas súmulas não deveriam ser interpretadas como permissão para a extinção unilateral do vínculo contratual, como se todo contrato contivesse um direito potestativo de arrependimento sem prazo.

 

Mas enquanto o mercado imobiliário atravessava o ‘boom imobiliário’ (2008 a 2013, principalmente), os julgados que determinavam a extinção do vínculo contratual sem fundamento não incomodavam sobremaneira os incorporadores: uma vez determinada a cessação contratual, havia enorme mercado de novos adquirentes buscando recomprar a coisa. Assim, além de reter parte do pagamento realizado pelo adquirente, revendiam o bem em bases superiores ao primeiro contrato.

 

Contudo, a partir de 2014/2015, com o agravamento da crise no setor[15], os pedidos de extinção contratual dispararam, sem que os incorporadores encontrassem novos interessados em readquirir o bem. A jurisprudência permissiva para a extinção do vínculo contratual passou a trazer maiores prejuízos financeiros às incorporadoras e comprometer o fluxo de caixa dos empreendimentos[16]. Como se pode imaginar, a possibilidade de o adquirente, após alguns meses da aquisição, simplesmente desistir (havendo ou não justificável motivação) do contrato enquanto a obra encontra-se em andamento, eleva sobremaneira o risco contratual do incorporador[17].

 

Na alocação de riscos desse contrato, o incorporador parte do pressuposto que o contrato é irretratável, cabendo apenas a resolução por inadimplemento das partes, com o consequente pagamento dos encargos e multas decorrentes do descumprimento. É a partir da irretratabilidade contratual que o incorporador se obriga perante toda uma coletividade para a construção de empreendimento e entrega de futuras unidades, porque pressupõe que receberá os valores definidos no contrato ao longo do curso da obra. Naturalmente, se a força obrigatória do pacto sofre mitigação, o risco contratual do incorporador é majorado demasiadamente.

 

Se ao longo da construção, por exemplo, um terço ou a metade dos adquirentes resolve, pura e simplesmente, comunicar ao incorporador a desistência do vínculo, requerendo a devolução de parte dos valores pagos, além de o incorporador deixar de receber os valores prometidos pelos adquirentes e que seriam utilizados na execução da obra, ainda ficaria desprovido de recursos caso obrigado à devolução imediata de valores. Evidentemente que a mitigação da irretratabilidade do pacto desnatura a álea normal dos riscos a que o incorporador se sujeitou.

 

Até porque a facilidade de rompimento do contrato permitiu que uma classe de adquirentes passasse a especular a aquisição imobiliária. Assim, quando deflagrada a crise do mercado imobiliário a partir de 2014, diversos compradores pleitearam o desfazimento do vínculo, não em razão de impossibilidade de adimplir o preço, mas por não julgar mais o contrato conveniente. Segundo Francisco Loureiro[18], “[…] a jurisprudência se tornou cada vez mais permissiva, admitindo que promissários compradores pedissem a extinção do contrato não por impossibilidade superveniente, mas por mero desinteresse, convertendo hipótese inicial de resolução em resilição”.

 

Prevalecendo o entendimento que o referido contrato admite a resilição unilateral, a irretratabilidade do instrumento fica ameaçada e, consequentemente, a sustentação financeira da incorporação imobiliária. Como bem referido por Roberta Maia[19], “a irretratabilidade é relevante aos pactos imobiliários justamente para impedir que o adquirente, após fazer contas, concluir que sairia mais barato inadimplir do que cumprir”[20].

 

Foi nesse sentido que a lei 13.786/18 foi editada, ou seja, com o objetivo de limitar os inúmeros pedidos de extinção dos contratos ausentes de fundamento, bem como reforçar a irretratabilidade do contrato, nos termos do já mencionado art. 67-A, § 12º da lei 4.591/64.

 

Mas o agravamento da situação financeira dos adquirentes, sobretudo em tempos de pandemia, reascendeu a discussão. Embora exista forte corrente jurisprudencial que defende que as questões pessoais do devedor, seu empobrecimento, sua doença, sua perda de capacidade física ou psíquica, não são admitidas como fundamento para fins de exoneração obrigacional ou mesmo revisão da avença[21], por outro lado, no âmbito da incorporação imobiliária, há diversos julgados que autorizam a extinção do contrato, quando o adquirente manifesta impossibilidade de cumprir a avença[22].

 

Para nós, o inadimplemento contratual das obrigações dos contratantes no contrato de promessa de compra e venda na incorporação imobiliária é bem definido, ou seja, descumprimento do pagamento do preço (obrigação de dar) e descumprimento relacionado à entrega e construção do empreendimento (obrigação de fazer).

 

Em princípio, a eventual dificuldade do incorporador em seguir com a obra não lhe autoriza pedir a extinção do vínculo. Ultrapassado o prazo de carência e tendo se comprometido a executar a obra, compete ao incorporador entregar as unidades, ainda que tenha que obter crédito extraordinário perante instituições financeiras ou adotar outras medidas (que não comprometam, claro o patrimônio de afetação). Se a mão de obra encareceu, se os insumos para a construção tiveram preços majorados ou se a incorporadora passa por dificuldades financeiras, nada disso, regra geral[23], pode alterar a obrigação de entrega da coisa. Para nós, a perda ou diminuição da capacidade financeira empresarial ou o aumento da taxa de esforço no cumprimento obrigacional não podem ser considerados fundamentos para a resolução ou revisão do contrato por onerosidade excessiva[24].

 

Da mesma forma, a alegação de dificuldade financeira do adquirente, também em princípio, não lhe permite ter a iniciativa de pleitear a extinção do vínculo. Descumprido o contrato e estando em mora o adquirente, a pretensão para a extinção da promessa será do incorporador, credor da obrigação. Isso porque, ainda que o adquirente esteja em mora, o credor pode manifestar o interesse em manter o vínculo, inclusive entregando a unidade ao adquirente, mas cobrando a dívida via ação judicial correspondente.

 

O fato é que mesmo antes da edição da MP 1.085, sempre houve corrente doutrinária que entendia que em caso de dificuldade para o prosseguimento do pagamento das parcelas do preço, estando ou não em mora, o adquirente poderá ter a iniciativa de propor ação de resolução contratual, desde que comprove que não tem mais condições financeiras de adimplir sua obrigação. O fundamento para tal resolução seria o vencimento antecipado do contrato (anticipatory breach)[25] que também evitaria o agravamento do prejuízo do adquirente com a demora no pleito resolutório, além de ser medida que prestigiaria a boa-fé[26].

 

Nos contratos em geral, o direito brasileiro vem admitindo o incumprimento antecipado do contrato tal como nos revelam os estudos de Ruy Rosado de Aguiar Júnior[27] e Judith Martins-Costa[28]. O instituto, especificamente na perspectiva do compromisso de compra e venda de imóveis, é analisado por Luiz Philipe Tavares de Azevedo Cardoso. Para o autor, em razão da função social do contrato, o adquirente que se encontra em “impossibilidade relativa” para prosseguir com o pagamento, poderia propor a ação de resolução, estando ou não inadimplente[29].

 

Em síntese: o contrato perdeu sua função social ao se deparar um dos contratantes com uma impossibilidade relativa de continuar honrando os pagamentos e, assim, obter definitivamente o bem a que se visava, como também para o outro contratante, que se vê diante de situação de provável ausência de pagamento do que lhe era devido, trazendo-lhe prejuízos evidentes, consistentes na ausência da remuneração correspectiva à prestação que se obrigou, fazendo-o ver frustrada também a finalidade contratual para o que se propusera.

 

Luiz Philipe Tavares de Azevedo Cardoso[30] ainda ressalva que “se é o próprio devedor que o alega, sua declaração de inadimplir deve vir acompanhada de alguma impossibilidade de prestar. Se não, sua conduta configura mero arrependimento, violação direta do pacta sunt servanda”.

 

Francisco Eduardo Loureiro[31] também registra que o fundamento para permitir a resolução do contrato por iniciativa do devedor não é a inconveniência do promitente comprador com o contrato firmado, mas, sim, a comprovada impossibilidade de cumprir a obrigação. Ademais, nesse sentido, o magistrado sugere nova forma de interpretação para a Súmula 543, do STJ[32].

 

Muito recentemente, o Superior Tribunal de Justiça permitiu que adquirente de imóvel, que embora adimplente, mas tendo comprovado sua incapacidade para prosseguir no cumprimento da obrigação, tomasse a iniciativa para resolver o contrato de compra e venda com pacto adjeto de alienação fiduciária por quebra antecipada do contrato, mas sujeitando-se às consequências da lei 9.514/97 pela sua conduta culposa[33]. Não é objetivo deste artigo tratar da controversa questão envolvendo a possibilidade (ou não) de extinção de contrato de compra e venda com pacto de alienação fiduciária. Contudo, verifica-se que o STJ admitiu a possibilidade de o devedor ter a iniciativa para pleitear a extinção do contrato com fundamento na alegação que não teria condições em prosseguir no pagamento, desde que respeitado o rito da lei 9.514/97.

 

Em Portugal, o Supremo Tribunal de Justiça também confere a possibilidade de o contrato ser resolvido antes do prazo quando o promitente comprador apresenta “recusa inequívoca e categórica em cumprir”, hipótese em que “a mora converte-se em incumprimento definitivo” e “assiste então, ao promitente comprador o direito de resolver o contrato-promessa […]”[34]. Em outro julgado mais recente, o mesmo tribunal confirmou que “a recusa (ou declaração) séria, certa, segura e antecipada de não cumprir (ou o comportamento inequívoco demonstrativo da vontade de não cumprir ou da impossibilidade ante do tempo de cumprir) equivale ao incumprimento (antes do termo), dispensando a interpelação admonitória”[35].

 

Naturalmente que o inadimplemento antecipado do contrato na hipótese de empobrecimento implica em atribuição de culpa para o adquirente. Assim, ainda que não esteja em mora, ou seja, mesmo não tendo havido o descumprimento contratual, o instituto do vencimento antecipado pode dar legitimidade para que o adquirente obtenha a resolução do contrato. Contudo, a perda da sua capacidade financeira e consequente impossibilidade de cumprir sua obrigação, tal como já verificado anteriormente, é questão subjetiva do próprio adquirente. Não caberá, portanto, exoneração do vínculo sem culpa, mas, sim, resolução culposa. Assim, nessa hipótese, o adquirente está sujeito às consequências da lei 4.591/64, no que diz respeito ao descumprimento contratual do promitente comprador e aos percentuais legais da cláusula penal (art. 67-A).

 

Para nós, reiteramos que as questões subjetivas do adquirente, a princípio, não importam em redução da cláusula penal, devendo ser aplicadas as consequências referidas. Aliás, justamente em razão de a lei 13.786/18 ter regulado as consequências para a resolução de contrato de promessa compra e venda na incorporação imobiliária, é que se defende a superação da Súmula 543, do Superior Tribunal de Justiça[36].

 

Em resumo: na incorporação imobiliária, a manutenção do vínculo é muito relevante para o desenvolvimento da obra, a considerar que os valores pagos pela coletividade são utilizados justamente na construção da edificação. O arrependimento posterior ao prazo legal não confere ao adquirente a possibilidade resilir unilateralmente o contrato. A dificuldade financeira do adquirente pode levá-lo ao inadimplemento absoluto e, nessa hipótese, a resolução culposa do contrato seguirá às consequências da lei 13.786/18.

 

Justamente nesse sentido, parece-nos mais do que acertada a decisão legislativa final que, no apagar das luzes, em razão de emenda apresentada no Senado, resolveu por manter o art. 32, § 2º, da lei 4.591/64, o que, num silêncio eloquente, significa a manifestação cabal da irretratabilidade do referido instrumento e sua importância para a incorporação imobiliária.

 

Fonte: Conjur

Deixe uma resposta