“Precisamos tratar a Internet como uma nova fronteira que faz parte de nosso legado digital. As coisas que criamos como um desdobramento de nossas vidas não vivem apenas conosco, em nossas casas; eles vivem em novas formas em um mundo virtual, que se estende muito além do nosso entorno imediato” (Richard Banks 2011, 123).

 

Atualmente, o direito contém uma legislação abrangente em relação à sucessão de bens físicos de um indivíduo, porém caminhamos ainda a passos lentos na discussão e na consciência da existência de um legado dos bens deixados no mundo virtual.

 

Conforme vamos migrando a vida para o ambiente digital, uma questão que passa a ser de suma importância é analisar a propriedade digital presente em todas a nossa interação dentro deste universo.

 

Segundo o Fórum Econômico Mundial divulgou recentemente, diariamente 95 milhões de fotos e vídeos são compartilhados no Instagram; 294 bilhões de e-mails são enviados e existe a estimativa de que até 2025 sejam criados 463 exabytes de dados por dia, o que equivale a 212,765,957 DVDs sendo criados diariamente. Até julho de 2020, havia 4.8 bilhões de usuários de internet no mundo.

 

O que fazer com todas essas informações, em especial as que pertencem a uma pessoa específica, quando ela deixa de existir? A quem delegar responsabilidades e direitos sobre estas informações?

 

Enquanto o conteúdo passível de sucessão até recentemente consistia em bens e itens físicos, cada vez mais estes itens estão armazenados digitalmente, protegidos por senhas acessíveis apenas por seu titular, tornando este legado inacessível.

 

Como menciona Astrid Waagstein: “Isso é um problema em vários níveis: a família enlutada fica paralisada ao tentar liquidar o patrimônio digital – e o acesso forçado aos dados pode violar a privacidade póstuma do falecido, os descendentes ficam sem heranças digitais e a sociedade perde a capacidade de rastrear a digital dimensão da cultura cotidiana de pessoas historicamente importantes”.

 

Com conversas avançando sobre experiências no metaverso, um lugar onde as pessoas poderão experimentar novas realidades, e o rápido crescimento do mercado de NFTs, esta discussão tende a se ampliar ainda mais rapidamente.

 

No caso dos NFTs, estes representam um item exclusivo de um bem não fungível, registrado através da tecnologia blockchain, e com compra através de criptomoedas, permitindo a aquisição virtual sobre obras de arte, itens de jogos on-ine, e até mesmo propriedades virtuais.

 

Este é o caso da Casa de Marte, por exemplo. Uma propriedade que existe apenas no formato digital, que foi vendida por 288 ether, equivalente a US$ 500 mil, ou os dois macacos adquiridos por Neymar pelo equivalente a R$ 6 milhões em etherium, tornando-o um novo membro do Bored Apes Yatch Club.

 

Outro caso que ficou famoso e que estreou em 2022 na Netflix na forma do documentário “Trust no one: the hunt for the Crypto King” é a história do falecido fundador da exchange de criptomoedas QuadrigaCX, Gerald Cotten, que morreu em 2018 levando consigo a única senha de acesso a milhões em criptomoedas de mais de 100.000 usuários em carteiras da QuadrigaCX com valor estimado à época em US$ 137 milhões.

 

Além do apresentado acima, temos a internet sendo utilizada de modo regular para questões do dia a dia, como forma de trabalho, mas também das formas mais diversas de monetização, como é o caso de influenciadores digitais, youtubers e gamers, pessoas que têm como fonte de renda, às vezes de maneira exclusiva, o uso de sua imagem no mundo digital.

 

Assim surge o “legado digital”, que, nas palavras de Nazaré Jacobucci é “todo o patrimônio gerado e acumulado por um usuário de plataformas digitais ao longo de sua vida”, ou seja, todos os bens deixados no formato on-line, como os perfis em redes sociais, sites, blogues, assinaturas de plataformas digitais, NFTs, ou seja, dados que se referem à pessoa natural, porém no mundo virtual. Isso significa que não apenas vivemos uma grande parte de nossas vidas online, mas também podemos deixar uma grande parte de nossa vida online para trás quando morremos.

 

Plataformas que já utilizam do legado digital

Com esta questão latente, algumas empresas passaram a oferecer a opção ao usuário de repasse ou gerenciamento de seus bens digitais, como: Apple, Google, Facebook, entre outras.

 

A Apple lançou o recurso de herança digital no IOS 15.2, sobre a ótica de que, sem o código, todos os seus aparelhos ficam bloqueados em sua conta e não podem ser reutilizados, sendo eles IPhone, IPad, Apple Watch, entre outros dispositivos da empresa. Com isso, a Apple permite designar uma ou mais pessoas que poderão acessar a conta do ID Apple em caso de falecimento, ou seja, permitindo que o usuário designe o seu herdeiro digital.

 

A forma de fornecer o acesso consiste em enviar uma autorização ao aparelho do herdeiro digital ou imprimir um QR Code em um papel para ser incluído nos documentos da herança, dando acesso somente em efetivo caso de morte. Ressalta-se que o herdeiro digital não terá acesso à conta do titular, pois o acesso ocorre apenas com a apresentação de documentos que comprovem a morte do titular.

 

O Google trouxe o Gerenciador de Contas, dando a opção para o titular dos dados escolher após quanto tempo inativa a conta deseja que os dados sejam apagados. Nesta modalidade, antes da exclusão, o Google envia e-mails e SMS para o titular, e caso tenha indicado, também para pessoa de sua escolha, relatando a inatividade e medidas para serem tomadas dentro do prazo.

 

Já o Facebook apresenta uma função que permite nomear uma pessoa como seu procurador da conta após a sua morte. Após o falecimento o procurador do titular deverá enviar documentos que comprovem o óbito e a rede social transforma a página em um memorial, sendo permitido que o procurador escreva posts indicando os serviços fúnebres ou incentivando os demais amigos a deixarem homenagens, permitindo ao procurador também aceitar pedidos de amizade e trocar a foto de perfil.

 

Além da possibilidade do legado digital em redes sociais, temos a oferta de empresas que propõem o backup da vida de seus clientes, ocorrendo o planejamento do legado digital. Um exemplo é a empresa Back Up Your Life, com sede em Durham, na Inglaterra, que auxilia seus clientes a se prepararem digitalmente para o dia de sua morte, realizando backup de todas suas informações, como fotos, vídeos, documentos, senhas, redes sociais, etc.

 

Outro exemplo é o Social Media Will da Digital Legacy Association ou o aplicativo My wishes, que permitem documentar os desejos quanto ao legado digital, incluindo a transmissão a um responsável indicado.

 

Conclusão

Nossa consciência da existência de legado digital no momento ainda é bastante pequena, mas à medida que percebemos o valor de nossos pertences digitais, a necessidade de fornecer às pessoas maneiras adequadas de acessar estes dados, e a sucessão destes, aumentará.

 

Esta discussão deve passar a fazer parte da estruturação de testamentos e declarações de vontade, da mesma maneira que hoje consideramos nosso legado material.

 

Enquanto as pesquisas e biografias sobre grandes personagens da nossa história no século 20 foram escritas baseadas em documentos manuscritos, muito das histórias do século 21 será baseada no legado digital deixado por estes personagens. Como estas histórias serão escritas se este conteúdo se perder?

 

Fonte: Conjur

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