No julgamento do RE 796.376/SC, que possui repercussão geral, discutiu-se, à luz dos artigos 1º, IV, 5º, II e XXXVI, 37, caput, 156, §2º, I e 170 da Constituição Federal, o alcance da imunidade tributária do Imposto de Transmissão Inter Vivos de Bens Imóveis (ITBI), prevista no artigos 156, §2º, I, da Lei Maior, em relação à incorporação de bens de imóveis do capital a ser integralizado.

 

Fixou-se, findo o processo no Supremo, a seguinte tese: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado”, e, por esta razão, polarizou, sobretudo no âmbito da hermenêutica tributária, opiniões acerca de tal decisão. Isso pois, municípios encontraram, a partir disto, margem para tributar ITBI excedente do capital a ser integralizado, gerando importante discussão sobre a legitimidade e constitucionalidade de tal ato.

 

A integralização do capital por meio de bens imóveis é constitucionalmente imune de tributação, ou seja, não incide o ITBI sobre o valor do bem dado em pagamento do capital subscrito pelo sócio ou acionista da pessoa jurídica, em razão do §2º, artigo 156, da Constituição Federal vigente.

 

A controvérsia origina-se na lacuna deixada pela norma a respeito da diferença do valor dos bens imóveis que superam o capital subscrito a ser integralizado, cabendo à hermenêutica da legislação decidir se há incidência ou não da tributação pelo ITBI nestas situações.

 

A interpretação que foi dada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do recurso extraordinário 796.376/SC foi no sentido de conceder imunidade tributária, prevista na primeira parte do inciso II do §2º do artigo 156, da Constituição Federal, somente sobre o valor do imóvel necessário à integralização da quota do capital social. Sobre o valor do imóvel incorporado que excede o limite do capital social a ser integralizado ou da própria cota do sócio respectivo, haverá incidência do tributo.

 

Por esta razão, verifica-se que a técnica interpretativa dada ao preceito foi de caráter teleológico. O método hermenêutico teleológico é usualmente utilizado pelas Cortes Superiores nas questões tributárias. Luís Roberto Barroso (BARROSO; 2012; pág. 137) ensina que, no âmbito tributário, vale-se do método teleológico, pois se “busca o sentido da regra jurídica tendo em vista o fim para o qual foi ela elaborada”. Em outras palavras, busca averiguar o espírito da lei, “tendo por pressuposto que toda norma tem um escopo, que será valorado pelo intérprete, diante das circunstâncias específicas da situação jurídica envolvida” (NEVES; 2021; pág. 298).

 

O problema da adoção de tal método em casos tributários é que, quando analisa-se os fins de um texto legal, nem sempre há coerência entre os objetivos e suas reais diretrizes. Por causa disso, parte da doutrina analisou o presente recurso extraordinário como margem perigosa em razão da dissonância entre as técnicas interpretativas adotadas pelos ministros ao fundamentarem seus votos, uma vez que pode levar a resultados distintos já que foram apresentados tanto o método teleológico quanto uma interpretação literal da norma.

 

Ao proferir o voto, o ministro Marco Aurélio (relator) justificou a interpretação teleológica, com que concordamos, das regras de imunidade, pois, “a verdadeira razão da lei está na finalidade para a qual editada e no exame dos fatos que para ela contribuíram”. A partir deste entendimento, é possível afirmar, portanto, que toda interpretação jurídica tem natureza teleológica, fundada no conhecimento axiológico do Direito (NEVES; 2021; pág. 299).

 

Sustentou a empresa que interpôs o recurso extraordinário em análise que o fisco municipal e o acórdão recorrido afrontaram o princípio da legalidade ao impor limitação à imunidade do ITBI em relação aos imóveis destinados à integralização do capital social da empresa, haja vista tal restrição não estar prevista na Constituição, nem no CTN.

 

Acrescentou que as ilações do Tribunal de origem a respeito das razões pelas quais se pretende destinar imóveis em valor superior ao da integralização do capital viola à livre iniciativa, pois não há nenhuma norma legal que proíba tal conduta, uma vez que o valor dos imóveis excedente ao capital social figurará na contabilidade empresarial com reserva de capital, conforme o acordo de vontade dos sócios consubstanciado no contrato social da empresa.

 

Ao proferir o voto que deu ensejo à fixação da tese, o ministro Alexandre de Moraes afirma que sobre  diferença do valor dos bens imóveis que superar o valor do capital subscrito a ser integralizado, incidirá a tributação pelo ITBI, pois a imunidade está voltada ao valor destinado à integralização do capital social, que é feita quando os sócios quitam as quotas subscritas.

 

Complementa que não há vedação que impeça os sócios ou acionistas de contribuir com quantia superior ao montante subscrito, nem que o contrato social classifique essa parcela como reserva de capital, uma vez que essa convenção se insere na autonomia de vontade dos subscritores. Afirma, ainda em seu voto, não admitir, a pretexto de criar-se uma reserva de capital, que pretenda-se imunizar o valor dos imóveis excedente às quotas subscritas, “ao arrepio” da norma constitucional e em prejuízo ao Fisco municipal.

 

Por essa razão, verifica-se que o método hermenêutico adotado pelo ministro condutor do acórdão é tanto o literal quanto o histórico-evolutivo, uma vez que buscou comparar a redação do inciso I do §2º do artigo 156 da Constituição com a do §2º, artigo 9º, da EC nº 18/1965.

 

O método literal (também conhecido como gramatical), pressupõe que os elementos de um enunciado têm sentido único, o qual o intérprete deve extrair e sistematizar. Por isso, a grande maioria da doutrina critica esse método uma vez que restringe a interpretação à literalidade textual (NEVES; 2021; pág. 294).

 

Barros Carvalho faz valiosa observação sobre a interpretação literal da norma, ao dizer que “o texto escrito, na singela conjugação de seus símbolos, não pode ser mais que a porta de entrada para o processo de apreensão da vontade da lei; jamais com a vontade do legislador” (CARVALHO; 2019; pág. 133-134). Assim, a hermenêutica literal não deve ser utilizada de forma isolada, mas somente como etapa inicial de um processo interpretativo.

 

Por sua vez, ao fundamentar o desprovimento do RE, o ministro Alexandre de Moraes concluiu que “não cabe conferir interpretação extensiva à imunidade do ITBI, de modo a alcançar o excesso entre o valor do imóvel incorporado e o limite do capital social a ser integralizado”.

 

Interpretar a norma por meio de uma interpretação literal, demonstra provável receio e desconfiança em relação aos motivos que levam um sócio/quotista a integralizar o capital de pessoa jurídica com bens imóveis que superem o valor das ações subscritas. Como bem alerta Letícia Borges das Neves, “destinar parte do valor do imóvel à conta de reserva de capital ou destiná-lo integralmente ao capital não afeta a exceção de incidência do imposto, não havendo, portanto, razões para dar tratamento distinto à realização do capital subscrito com a transferência de imóveis ainda que com ágio” (NEVES; 2021; pág. 296).

 

Ocorre que, a pretexto do que foi fixado na tese 796, municípios não reconhecem a imunidade tributária (ITBI) contida na Constituição (artigo 156 §2º, I) na transferência de imóveis, ainda que exatamente no mesmo valor constante da sua declaração de imposto de renda para a formação de capital social da empresa.

 

Não procede a pretensão de municípios sustentarem a existência de distinguishing entre o precedente do STF e qualquer situação em que se pretende formar capital social a partir de bem imóvel por seu valor venal. Independente da escrituração ou não valor excedente do móvel como reserva de capital, a empresa a ser beneficiada da incorporação passa a ser proprietária de bem cujo valor real no mercado é superior ao valor pelo qual este foi recebido.

 

Ao afastar interpretação extensiva da imunidade, gerou resultado ao contribuinte o que, por sua vez, deflagará inúmeros litígios entre contribuintes e fazendas municipais. Esse novo entendimento do STF pode afetar planejamentos sucessórios, patrimoniais e tributários, uma vez que na constituição de holdings por vezes envolve a subscrição de capital nos moldes da decisão do Tema 796.

 

Fonte: ConJur

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